De alguma forma, todo o ato de desobediência tem a sua grandeza. As maiores conquistas civilizacionais e os mais preciosos direitos são devidos aos que recusaram acatar e calar. Mas quem perfeitamente se incrustou na ordem e no sossego doméstico considera que desobedecer é uma entre várias formas de revelar má criação, falta de princípios ou ignorância. Claro, a insurreição dá medo, rasteira os pés, puxa o tapete e sacode-o, mas, enfim, toda a evolução tem mácula, todo o parto é uma dor terrível que o bem que traz faz esquecer. A professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada também esquece a má vida dos poetas que venera como a deuses e a génese sombria, marginal, daquele verso pronto e acabado que agora docemente a conforta nos lençóis. Tudo dá no mesmo.
Eu tenho um fascínio apaixonado pela desobediência quando a coragem moral a sustenta. O que desprezo é o desobediente indigno, borrado, manhoso, em causa própria e menor, sem peito nem bandeira. Envergonham-me, de uma vergonha que não devia sobrar para mim, as maroscas por indevidas vacinas, os clientes do restaurante que fugiram à multa pelo túnel de esgoto, a notícia, ainda fresca, de que Portugal perdeu lugar na lista de países "totalmente democráticos".