Aos sábados de tarde, o Eduardo, que morava duas portas adiante, aparecia para brincar com o mais velho. Empoleiravam-se os dois nas copas das árvores e por lá moravam horas a fio, maquinando estratégias de batalha enquanto esculpiam arcos e flechas com paciência de chinês. À sua bravura e astúcia haviam de sucumbir exércitos de sanguinários que vinham do norte, pragas apocalípticas, malfeitores que surgiam detrás dos arbustos disfarçados de clérigos ou mendigos e outras tramas da imaginação. Um dia, quieta e calada para não perturbar tão justa infância, vi pela janela que deram com um pardalito morto no chão. Vasculharam-no em busca de uma causa edificante, um sinal de tragédia, martírio ou atentado que pudesse fazê-lo personagem daqueles enredos de faz de conta. Porque se é verdade – e muitos dizem – que faz sempre falta à realidade um pouco de fantasia, também dá muito jeito à fantasia, para melhor se compor, tomar alguns factos de empréstimo à realidade. Mas o pardalito, oh, era apenas um cadáver sem graça nem história, pronto a servir aos vermes. Com um ar todo de lamento e cerimónia, a imitar o que os adultos usam à beira de um caixão, foi o Eduardo quem assinou a autópsia: coitado, deve ter morrido de saúde.