22.2.21

Como a catraia a quem descontassem tempo de castigo, encho-me de euforia quando me pedem que dê um salto à empresa. Nos primeiros minutos do caminho dá-me a impressão do princípio do mundo, as coisas são absurdamente estranhas, há névoa e vagar como nas manhãs de domingo, a cidade não cheira porque não transpira as fumaças do seu labor e da sua correria. Enquanto conduzo, ouço a minha playlist de função energizante, mais de quarenta músicas cirurgicamente escolhidas para me manter os nervos firmes, livrá-los da melancolia, da preguiça, do desalento ou outras semelhantes, fazer o pé mais pesado no acelerador. O ritmo é tão oposto ao do real que soa a histeria e futilidade, mas ignoro a dissonância e sigo, brincando ao faz de conta que é um dia como os de antes. Ignoro também depois as salas vazias, os gabinetes às escuras, os telefones mudos, a copa abandonada, sento-me, ligo o computador, ponho os auscultadores para iludir a surdez. Revejo as varandas do prédio defronte, os ficus alinhados no terceiro andar, as redes de segurança das crianças do quinto, as poltronas de verga do primeiro, onde nunca vi ninguém sentar-se e assistir ao pôr-de-sol. Ora essa, tudo na mesma, assim me convenço ou fantasio. Para sobreviver, todos vamos retirando camadas do que somos. Retiramos, por esta ou outra ordem, a inocência, a rebeldia, a ambição. E, em dias assim, se for preciso, se nos poupar, retiramos até a consciência, a visão, a lucidez. Um dia entraremos na morte despojados de todas as camadas, um naco de carne pronto a ajoelhar-se diante do grande mistério, sem argumento ou contestação. 
Volto para casa e ao rodar a chave na fechadura quase me parece um fim de tarde vulgar. O mais novo anuncia-me que fez um bolo de chocolate, o mais velho foi correr, Isabela mostra-se grávida de seis brotos carnudos, apontados a levante. É hora de tratar do jantar mas, entretanto, esqueci a ordem das coisas. Então caio no sofá e ponho-me a escolher destinos de férias. A liberdade é um fôlego contagioso e galopante, um perigo absoluto.