Morreu a mãe do senhor Pereira, a velha muito velha de feitio retorcido que passou aqui uma vez, apoiada no perdão do filho e na condescendência da nora. Há quem reclame da falta de justiça divina: viveu demais para os estragos que fez, já devia ter ido há muito. Foi sempre tesa como um arco de flecha pronta, fria como gelo, azeda como leite esquecido, enxotando beijos e abraços como moscas. Reza uma lenda – de restrita disseminação – que deu uma tareia ao marido, ela nunca confirmou nem desmentiu mas a fama foi-lhe útil para dissuadir oportunistas e toda a espécie de parasitas. Cobrou cada desobediência do filho imprimindo-lhe a fatura em cheio nas nádegas. Por vezes afrouxava, dando sinal de alguma benevolência ou compreensão, e então o Pereira menino, recuperando os plenos poderes sobre a sua infância, logo se metia em sarilhos ou caía nalguma leviandade e entornava o caldo. A velha muito velha tinha a astúcia do verdadeiro ditador, que mantém a oposição viva, em lume brando, com folga ligeira na corda, e espera dela o descuido, o erro, para reforçar o seu poder e lembrar que o aquele que facilita e autoriza é o mesmo que dá a vergastada.
Morreu de nada mais do que cansaço, durante a noite, deitando por terra a ideia de que os maus sentimentos fazem germinar todo o tipo de doença. Apagou suavemente como um pavio esgotado. Paz à sua alma, que deve estar precisada.