26.8.20

Esta noite sonhei que a avenida se tinha tornado um antro de desvalidos. Tive de a atravessar de ponta a ponta para chegar a casa e por todo o lado vi gente a quem não sobrava força nem para levantar a cabeça contra o vento. Havia de tudo um pouco, todo o tipo de desgraças, vícios, amputações e azares, e eu passei olhando a medo, de viés, sem saber se mais lhes devia atenção ou indiferença. É preciso cuidado com a dor dos outros, ela tem a sua dignidade e, por isso, a sua vergonha. Por vezes, julgando estar a consolá-la estamos a insultá-la, a arrancá-la ao recatamento desejado, a desvalorizá-la com lugares-comuns, banalidades, conselhos que só dá quem pensa que por ter provado a sua dose sabe das doses dos outros. Os deuses encarregam-se de a cada alma atribuir os seus tormentos, não há lençol que não tenha o vinco da volta que mil vezes se deu na cama pela noite dentro, mas no modo de sentir ninguém se iguala. 

(Talvez este cenário e pensamentos afins se tenham enredado no meu sonho por ter estado ontem a ler sobre Aokigahara. Ao adormecer baixei a guarda e fez-se à vontade e em abundância o tráfico de dados e emoções através das fronteiras da minha consciência.)

Chegada ao fim da avenida, entrei com alívio na casa que supus ser a minha e ao cimo das escadas esperava-me a velha de Santiago, muito ereta, proprietária, com um olhar desumanizado. Notou que estremeci ao vê-la e com isso ganhou vigor pois é onde o sangue mais fraqueja que os poderosos cravam o sustentáculo dos seus palácios.
– Isto são horas de chegar? perguntou em português limpinho. 
Percebi então que era uma menina desaninhada, longe de colo e família, a viver de favor em casa alheia. Segurei a raiva, deixei que a galega virasse costas e acordei.