Noto, com alívio, que começam a abrir os olhos aqueles que, na solidez das suas casas, na concavidade dos seus sofás, na sua melancolia de chazinho e poesia, acreditaram que o coronavírus era uma oportunidade para sairmos melhores e regressarmos aos valores essenciais. A estufa de sentimentalidades onde se colheram as mais suculentas pieguices e de onde alguns conseguiram até arrancar argumentos de júbilo pela paz em que se sentiam encarcerados nas suas casas, começa finalmente a perder viço. Estar confortável com uma tragédia que outras maiores arrastará consigo por largo tempo, se não é egoísmo, há de ser ignorância, e se nem uma nem outra, só sobra religião. Depois, como é costume, ainda aparecem os entendidos com o seu portefólio de chavões, a lembrar que nas épocas de crise o espírito está recetivo como um ventre maduro e nele podem ser concebidas ideias magníficas, nunca antes nem de longe vislumbradas. Acredito, mas por cada ideia luminosa que desponte, que abra portas, reinvente caminhos, dê lucro e fôlego para recuperar, quantas ideias obscuras, de morte, violência e desalento se concebem?