9.5.20

Entre todos os alívios que a existência humana reconhece e pelos quais suplica – nas maioria das vezes em silêncio por serem da esfera da intimidade – e que, quando alcançados, propiciam um delicioso afrouxamento dos nervos e dos músculos, uma suave inclinação da cabeça e aquele sorriso lânguido, de olhos revirados e a par de um longo suspiro, dou agora conta de mais um: tirar a máscara ao entrar em casa. Mas depois do deleite primeiro que é ter o ar fresco no rosto como se de um bem raro e de dura conquista se tratasse, depois de o inspirar profundamente, de ele subir limpo, novo, por cada uma das narinas, depois do gozo de o sentir dar a volta completa nos pulmões, sou tomada por aquela melancolia que segue o êxtase, aquele fumozinho que resta após o fogo se extinguir.
Olho a máscara, largada onde deverá purgar o mal de que é suspeita e que agora se impõe considerar o pior dos piores, atirando para um perigoso esquecimento tudo o mais que mói e mata com requintada malvadez, e penso: a que raio de mordaça, açaime ou amarra veio agora obrigar-se a humanidade! Numa hora destas, em que o mundo parecia girar sem grande novidade, as desigualdades já tão velhas, o círculo vicioso das guerras, o sangue coagulado nas fronteiras, os tronos côncavos dos mesmos corpos, o solo farto dos mesmos mortos, a miséria e a abundância chocando em encruzilhadas obscuras, a má distribuição da felicidade, a justiça a morar num barraco, a inteligência obrigada a prestar serviço à estupidez geração após geração, nós tão desgraçadamente acostumados a tudo como se fosse nada, e de repente, com este solavanco, coisa tão pouca como respirar em liberdade torna-se o mais difícil e delicado de todos os prazeres.