Em casa do meu vizinho, não sei por ação de que virose, as lógicas estão do avesso. Agora, é ela quem fala mais. De meia em meia hora, ó Vasco, caramba pá, uma voz melada e sem fé, como a da mãe depois de cem vezes ter mandado ao filho que arrumasse o quarto. A criatura, que de manhã à noite berrava descontente do mundo que lhe coube, só a espaços manifesta as suas iras inocentes e animais, a fome, o frio, o sono. E ele parece curado do mal da vitimização, foi-se a choraminguice por não ser reconhecido pelo empenho nas tarefas domésticas ou por não poder explicar até ao fim o que, quem sabe, talvez nem tenha explicação. Enfim, o cansaço vai mantendo em lume brando mágoas e ressentimentos, quanto mais não seja porque assim com as portas cerradas o risco de explosão aumenta e entre a trabalheira de apanhar estilhaços ou continuar em modo morno e preguiçoso, parece óbvia a escolha.
Mas ontem, pelo meio não sei de que conversa, ouvi-o de novo erguer a voz – que por ser naturalmente dócil não causa grande susto – e dizer tal qual:
- Estás sempre nhe-nhe-nhe, nhe-nhe-nhe, nhe-nhe-nhe, não te calas, pareces a minha mãe!
Julguei que dali fosse rebentar discussão mas só silêncio e a água a correr no meu lava-louça. E talvez porque ela o tenha ignorado, coisa que fere, acima de todas as outras, o ego esperto de um provocador, ele investiu com mais força:
- É que pareces mesmo a minha mãe, apre!
Nada. Mas à noitinha, a cama deles rangeu com um ritmo suave, amoroso, como há muito eu não ouvia.