28.5.20

A uma mulher, cansa muito carregar o próprio corpo a vida inteira. É certo que os homens também carregam os seus fardos e para que não falhem na tarefa a natureza concedeu-lhes costas amplas. Mas eles, se lhes aprouver, atiram fora a carga ao fim dia, dispensam-na, mandam à fava o capataz, trocam de serviço ou escolhem mandriar. Nós temos a carga de nascença, sem escolha, e a nossa rotina é libertá-la em conta-gotas. Entre sangue, leite ou filhos, não há uma que não doa quando vaza, que não cheire, suje ou rasgue, que não corroa as fibras, os tecidos, as dobras. Por mais que no mundo nos seja dada a voz, o direito e o poder – por caridade, após conjeturas e deliberações de assembleia ou porque alguma se sacrificou até à morte pelas outras – e ainda que aos homens um dia seja dada a faculdade de entender – porque saber não é o mesmo que entender – nada poderá aliviar-nos dessa carga desigual, que às vezes morde os rins como um cão raivoso e espeta agulhas nos seios e despedaça o ventre em golpes duros. E na hora em que esses lugares do corpo deixem de sofrer por se retirarem do ofício da fertilidade, terão de ser vigiados em dobro, com olhos, sondas, dedos, porque neles a morte costuma ter gosto em largar a sua âncora. Quanta ingratidão.