A uma mulher, cansa muito carregar o próprio corpo a vida inteira. É certo que os homens também carregam os seus fardos e para que não falhem na tarefa a natureza concedeu-lhes costas amplas. Mas eles, se lhes aprouver, atiram fora a carga ao fim dia, dispensam-na, mandam à fava o capataz, trocam de serviço ou escolhem mandriar. Nós temos a carga de nascença, sem escolha, e a nossa rotina é libertá-la em conta-gotas. Entre sangue, leite ou filhos, não há uma que não doa quando vaza, que não cheire, suje ou rasgue, que não corroa as fibras, os tecidos, as dobras. Por mais que no mundo nos seja dada a voz, o direito e o poder – por caridade, após conjeturas e deliberações de assembleia ou porque alguma se sacrificou até à morte pelas outras – e ainda que aos homens um dia seja dada a faculdade de entender – porque saber não é o mesmo que entender – nada poderá aliviar-nos dessa carga desigual, que às vezes morde os rins como um cão raivoso e espeta agulhas nos seios e despedaça o ventre em golpes duros. E na hora em que esses lugares do corpo deixem de sofrer por se retirarem do ofício da fertilidade, terão de ser vigiados em dobro, com olhos, sondas, dedos, porque neles a morte costuma ter gosto em largar a sua âncora. Quanta ingratidão.
28.5.20
19.5.20
De resto, também é preciso dizer que tudo perdeu graça e glamour. Acabou a solidariedade de varanda, as receitas de pão caseiro, as odes ao café de italiana e aos passarinhos. Nunca mais se fez prosa rebuscada sobre os planos do universo, nem sobre a revolta da natureza, essa coitada tão oprimida que se armou de um vírus do diabo para justamente destituir os poderosos. Talvez os sermões que o pivô das notícias deu como quem dá esmolinha já não inspirem ninguém. É de tristeza e apatia a face visível dos adolescentes do colégio lisboeta que hoje vinha no jornal. Há novos casos de padres incapazes de dominar o gosto sórdido por carne tenra. Da porta da papelaria a rapariga atira-me acenos vivos, cheios de uma estival feminilidade, e o Marco do ginásio, ao passar para nenhures com a chave da porta que ainda não pode abrir, apanha-os no ar julgando que lhe são dirigidos. Está um dia muito bonito e a morte ronda as moradas de todos nós com pezinhos de lã ou patadas de besta, consoante o fado de cada um, sem novidade, como desde que o mundo é mundo. Quem foi que disse que nunca mais seriamos os mesmos?
15.5.20
14.5.20
Noto, com alívio, que começam a abrir os olhos aqueles que, na solidez das suas casas, na concavidade dos seus sofás, na sua melancolia de chazinho e poesia, acreditaram que o coronavírus era uma oportunidade para sairmos melhores e regressarmos aos valores essenciais. A estufa de sentimentalidades onde se colheram as mais suculentas pieguices e de onde alguns conseguiram até arrancar argumentos de júbilo pela paz em que se sentiam encarcerados nas suas casas, começa finalmente a perder viço. Estar confortável com uma tragédia que outras maiores arrastará consigo por largo tempo, se não é egoísmo, há de ser ignorância, e se nem uma nem outra, só sobra religião. Depois, como é costume, ainda aparecem os entendidos com o seu portefólio de chavões, a lembrar que nas épocas de crise o espírito está recetivo como um ventre maduro e nele podem ser concebidas ideias magníficas, nunca antes nem de longe vislumbradas. Acredito, mas por cada ideia luminosa que desponte, que abra portas, reinvente caminhos, dê lucro e fôlego para recuperar, quantas ideias obscuras, de morte, violência e desalento se concebem?
12.5.20
Talvez porque eu tenha merecido, agindo com paciência e resignação, aceitando as nossas diferenças, relevando o que jamais devia ter condenado, a minha orquídea abriu-me finalmente três braços carregadinhos de pétalas brancas, aveludadas como pele de bebé. Para premiá-la, levei-a mais uma vez à janela e tirei-lhe o retrato, fazendo assim prova da sua abundância e autorizando-a seduzir quem andasse de passeio pela rua. Mas com o tempo de cara tão feia, o dorso da serra desaparecido atrás das nuvens, as folhas das árvores a suspirarem ao vento pela demora da primavera, as ruas tristonhas e o mundo cheio de preocupações, nada nem ninguém pareceu dispor-se a adorar beldades desabrochadas em ambiente doméstico, entre o calor humano, ignorantes das agruras da vida, sem mossas ou traumas na sua delicadeza.
Depois do retrato, devolvi-a ao lugar do costume, que é no chão, à sombra de uma areca, ao lado de uma estante. Reconheço ser injusto da minha parte encafuar uma orquídea a pretexto de um castigo sobre a estupidez de outra, que – não me canso de repetir – morreu babadinha por um gato vadio. Mas compenso de outro modo. Por ter restaurado a minha fé na boa vontade das orquídeas, que eu julgava viverem para exclusiva satisfação dos próprios caprichos, merece a maior das honras: ser nomeada. Isabela.
9.5.20
Entre todos os alívios que a existência humana reconhece e pelos quais suplica – nas maioria das vezes em silêncio por serem da esfera da intimidade – e que, quando alcançados, propiciam um delicioso afrouxamento dos nervos e dos músculos, uma suave inclinação da cabeça e aquele sorriso lânguido, de olhos revirados e a par de um longo suspiro, dou agora conta de mais um: tirar a máscara ao entrar em casa. Mas depois do deleite primeiro que é ter o ar fresco no rosto como se de um bem raro e de dura conquista se tratasse, depois de o inspirar profundamente, de ele subir limpo, novo, por cada uma das narinas, depois do gozo de o sentir dar a volta completa nos pulmões, sou tomada por aquela melancolia que segue o êxtase, aquele fumozinho que resta após o fogo se extinguir.
Olho a máscara, largada onde deverá purgar o mal de que é suspeita e que agora se impõe considerar o pior dos piores, atirando para um perigoso esquecimento tudo o mais que mói e mata com requintada malvadez, e penso: a que raio de mordaça, açaime ou amarra veio agora obrigar-se a humanidade! Numa hora destas, em que o mundo parecia girar sem grande novidade, as desigualdades já tão velhas, o círculo vicioso das guerras, o sangue coagulado nas fronteiras, os tronos côncavos dos mesmos corpos, o solo farto dos mesmos mortos, a miséria e a abundância chocando em encruzilhadas obscuras, a má distribuição da felicidade, a justiça a morar num barraco, a inteligência obrigada a prestar serviço à estupidez geração após geração, nós tão desgraçadamente acostumados a tudo como se fosse nada, e de repente, com este solavanco, coisa tão pouca como respirar em liberdade torna-se o mais difícil e delicado de todos os prazeres.
5.5.20
4.5.20
Em casa do meu vizinho, não sei por ação de que virose, as lógicas estão do avesso. Agora, é ela quem fala mais. De meia em meia hora, ó Vasco, caramba pá, uma voz melada e sem fé, como a da mãe depois de cem vezes ter mandado ao filho que arrumasse o quarto. A criatura, que de manhã à noite berrava descontente do mundo que lhe coube, só a espaços manifesta as suas iras inocentes e animais, a fome, o frio, o sono. E ele parece curado do mal da vitimização, foi-se a choraminguice por não ser reconhecido pelo empenho nas tarefas domésticas ou por não poder explicar até ao fim o que, quem sabe, talvez nem tenha explicação. Enfim, o cansaço vai mantendo em lume brando mágoas e ressentimentos, quanto mais não seja porque assim com as portas cerradas o risco de explosão aumenta e entre a trabalheira de apanhar estilhaços ou continuar em modo morno e preguiçoso, parece óbvia a escolha.
Mas ontem, pelo meio não sei de que conversa, ouvi-o de novo erguer a voz – que por ser naturalmente dócil não causa grande susto – e dizer tal qual:
- Estás sempre nhe-nhe-nhe, nhe-nhe-nhe, nhe-nhe-nhe, não te calas, pareces a minha mãe!
Julguei que dali fosse rebentar discussão mas só silêncio e a água a correr no meu lava-louça. E talvez porque ela o tenha ignorado, coisa que fere, acima de todas as outras, o ego esperto de um provocador, ele investiu com mais força:
- É que pareces mesmo a minha mãe, apre!
Nada. Mas à noitinha, a cama deles rangeu com um ritmo suave, amoroso, como há muito eu não ouvia.
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