12.4.20

Ao soar a chegada do compasso pascal, alinhávamo-nos todos ao cimo das escadas. Pais, avós, tios, primos, irmãos, num perfeito equilíbrio de poderes, ideias e idades, convergindo no instante da suprema reverência ao beijar o crucificado. Para além da vontade sincera que eu tinha de fazer jus àquela causa divina de sacrifício, dor e abnegação – descartada mal entrei na adolescência – o que lembro com mais vivacidade é o cheiro a álcool etílico. Num tempo em que misérias, doenças e bizarrias do outro mundo ainda dominavam os enredos da província, o hálito desinfetado de Cristo era uma garantia. Permitia o beijo em total devoção, de olhos fechados, à confiança, pouco importando quantos outros antes haviam feito igual, que beiços ali tinham pousado, que vidas microscópicas embarcavam naquela cruz para aportar na próxima boca. Enfim, a verdadeira comunhão. Pese embora o carinho e o respeito com que lembro este ritual, senti algum alívio quando me vi livre dele, lá pelos finais da minha infância. Já a mãe da rapariga da papelaria, que continua sem acatar a ordem de confinamento absoluto, chora-se de este ano não poder ter essa graça, nem com a salvaguarda do álcool etílico. Atrás do balcão, encostada ao canto como num castigo, de boca e nariz enterrados na gola do casaco, esconjura o padre Gabriel por se submeter a esta embrulhada sem tugir nem mugir. A quem serve ele, afinal? Não é a deus? Acaso deus mandou-lhe que cancelasse alguma coisa? De facto, não. Não consta que deus tenha dado essa ou outra instrução qualquer. Aliás, onde está ele senão na resposta que nunca chega, no consolo que nunca basta, na casa onde nunca se consegue viver em paz?