Tive uma infância feliz, maculada por uma única tristeza: a de não poder usar o cabelo comprido. Ao cabo de cinco filhos, julgo que a minha mãe ficou sem disposição para cuidados extremos, tranças, lacinhos e caracolinhos e, chegando eu, sobreveio o pragmatismo. Não a condeno, éramos muitos e a manter a ordem pouco sobrava de tempo para investir em beleza. Queixas também não tenho – se por ter sido a última a nascer fui obrigada a cortes de cabelo mais austeros, por outro lado beneficiei de todos os privilégios que o afrouxamento da autoridade propicia.
É dos livros, porém, a dificuldade em contentar seres humanos, sejam novos ou maduros, e, pese embora tudo o que eu tinha, ainda me doía o que me faltava. Lembro-me de uma das minhas três irmãs, a loirinha, ao espelho a perguntar-me: achas que fico melhor assim ou assim? e ora punha o cabelo para a frente, ora o puxava para trás e de qualquer das formas era magnífico, farto, brilhante, expressivo, e os rapazes cobiçavam-no, dispostos a aguentar o desdém e a má cara com que ela lhes pagava os atrevimentos. No carnaval, eu remediava o desgosto fazendo cabeleiras com serpentinas, tarefa que me exigia paciência de chinês mas era largamente compensada pela sensação das fitas soltas pelas costas abaixo, deslizando para a frente se eu me inclinava, escondendo-me o rosto se me envergonhava, exaltando a minha elegância se as passava por detrás da orelha num gesto vagaroso e feminino. Até quando fui recrutada para o papel de Virgem Maria numa peça de teatro, mais me entusiasmou a ideia da cabeleira que teria de usar do que os valores cristãos a transmitir com a minha seráfica postura.
Só por volta dos treze anos fui autorizada a usar o cabelo conforme me desse na gana e então deixei que crescesse caótico e solto. A minha avó, sempre com prenúncio de desgraça debaixo da língua: corta-me essa melena, rapariga, que assim vais sofrer das vistas, vais apanhar piolhos, vais tropeçar no caminho. Nem sofri das vistas nem apanhei piolhos, quanto aos tropeções a história é outra mas não vem ao caso. Hoje, quando passo diante da porta do salão e a cabeleireira vem tomar-me a consistência aos cabelos e propor-me que lhes dê outro corte, outra cor, um reflexo, um artifício, viro-lhe as costas e é como se hasteasse ainda, tantos anos depois, a bandeira da minha liberdade.