22.2.20

A professora que vive no prédio em frente com três gatos pretos e um ror impressionante de tralha acumulada, fuma à porta do pingo doce com ar de quem se apartou da realidade. Leva o cigarro à boca num automatismo muito lento e o seu olhar escuro, embotado, descaído, passa através das coisas. Mesmo que me ponha diante dela, sei que não me verá e ainda bem. Contar-me-ia, pela enésima vez, quão miserável é pedir aos alunos que escrevam o que pensam acerca de um facto ou ideia e eles ei, ó stora, sei lá eu o que penso. Depois, já sei, lamentaria a falta de interesse e a indisciplina desta geração que vai precipitar o mundo no caos. Cansam-me muito estes lugares comuns, a lente viciada com que olhamos para aqueles cujo estado é fruto do nosso, esta recusa em aceitar que uma coisa, seguindo-se a outra, leva sempre o seu adn, a sua herança, as suas culpas, as faturas que ficaram por pagar, a consequência dos seus atos. São os adultos, não os miúdos, quem anda a descartar as responsabilidades. E a professora, só porque não teve filhos, julga que pode falar de cima e à parte. Oh, como se engana! Olho para ela, parece-me um buraco negro, lamento que o interesse e a disciplina não a tenham salvo da infelicidade.