– Já leu o livro dos velhos no lar?
Vítima da emboscada da mulher do senhor Pereira, sobressalto-me à entrada do pão quente. Ela bate os tacões como cascos de cavalo para se anunciar, ávida de atenção, e eu compreendo-a por saber o quanto investe no traje, na maquilhagem e, pela época, também no bronzeado. Notam-se-lhe na pele os brilhos gordurosos e obscenos de agosto, é acabada de chegar de oito dias inteiros de torra ao sol, lambendo-se com óleos de coco e cenoura, estirada em resorts de onde nunca sai por repulsa às misérias e aos maus cheiros das latitudes tropicais. Numa mão tem um saco de moletes, na outra quatro anéis e um gesto afetado. Sorri de cima, maternal, piedosa, como se, na verdade, pouco ou nada lhe importasse a resposta que darei.
– Qual livro dos velhos no lar?
É fácil saber do que fala a mulher do senhor Pereira, já que ela só sabe falar do que todos os outros falam. Mas, por razões que resumo ao puro sadismo (cada um diverte-se como quer em agosto), não me apetece facilitar-lhe a vida, nem ela precisa. Nada desbasta o orgulho aparente desta mulher e por maior que seja a estocada, jamais descerá do pedestal para olhar o outro com empatia, o seu prazer está em apiedar-se do sofrimento alheio e é a pena que sustém a sua verticalidade. Triste e grave é o que acontece aos outros, coitadinhos. De resto, a traição do marido, as afrontas da imperatriz, o caráter mole do caçula, o divórcio da filha mais nova, as esquerdices da mais velha, perante tudo isso se apresenta superior, ostentando sempre o fato de lantejoulas e as bandarilhas com que o toureiro cria no público a ilusão de que o massacre é, afinal, uma festa magnífica. Não é que seja mestre na arte da superação, mas é-o, sem dúvida, na ciência do disfarce.
– Este.
Da carteira tira o livro que ganhou o consenso e a comoção de todos, sem exceções, reservas ou ressalvas. Depois, torna a guardá-lo rapidamente como se me tivesse mostrado uma arma.
– E então, presta?
Dizem as verdades de trazer por casa que não se discutem os gostos e eu discordo, pois se houver território onde o debate desafia e enriquece é por certo o da subjetividade. O livro de que a senhora fala, ofereceram-mo há mais de ano e meio, peguei-lhe com curiosidade e abandonei-o a meio, vencida pelo tédio. Acredito que seja um livro de boas intenções, nobre pelo propósito e pela dedicação, mas é frígido, sem rasgo, não convence. Vamos, claro, aceitar a hipótese de os meus lapsos de inteligência e sensibilidade terem condicionado a leitura e podem até perguntar-me quem sou eu para desdizer a maioria, essa entidade sapiente e provedora, dona dos tempos de antena e das colunas de opinião, que se nutre de si mesma e segue à frente para abrir caminho ao pensamento e poupar a gente a esforços demasiados e desnecessários. Sou ninguém. Mas como os gostos se discutem, olhe – se quer um livro sobre velhos que apodrecem em lares, sobre a memória e o corredor da morte, que comove e remexe no pavor de existir sem pieguices, entre com coragem e coração firme no Em nome da terra, do Vergílio Ferreira. Isto só penso, porque na hora em que vou falar, a cobardia amordaça-me e o senhor Pereira, vindo não sei de onde:
– São uma delícia estas conversas das senhoras. Uma delícia.
Mal ele abre a boca e já ela se lhe pendura no braço, gesto de fidelidade conjugal ou reflexo condicionado. O senhor Pereira pergunta-me se está tudo bem, como estão os rapazes, quando vou de férias, porque estou tão branca, tão magra, tão séria. Abala sem esperar respostas e eu fico a admirá-los, as costas muito hirtas, os sorrisos tão abertos, os cumprimentos largos e festivos. Como está, minha senhora? Continuação, senhor doutor.
Todos envelhecemos, mas alguns, como se lhes fosse prescrita, à nascença, toda a má sorte do mundo, vergam muito antes de a idade o justificar, enquanto outros, porque lhe são concedidos privilégios de ordem genética ou modos mágicos de viver a vida, preservam até muito tarde o brilho e a saúde. Os Pereira envelhecem com teimosia, impõem-se à vida com propriedade e exuberância como se ainda tivessem créditos e recusam-se a desistir antes que as contas estejam todas saldadas. Tiremos-lhes o chapéu porque, apesar de tudo, triunfam.