A propósito do que ando a ler — Eles pensavam que eram livres, Milton Mayer — sobre a forma como, nos anos 30, os alemães comuns, cidadãos vulgares, encorparam o nazismo sem noção de que precipitavam o inferno, dou comigo a pensar no caminho que tomámos até ao estado em que hoje nos vemos. Não nos comparo a eles, nem em motivos nem em aspirações. Nós não temos nem a inocência nem a crença cega num ideal enviesado de salvação. Mas temos a cobardia e o pensamento à deriva, um torpor sentimental que nos mantém sempre em lume brando, distraídos, convenientes, ocupados na manutenção dos empregos e na conquista de um metro quadrado a preço justo. Vamos às urnas, gratos pelo que abril nos deu, mas habituados já a escolher entre fantoches e fanfarrões, entre a miséria, a indecência, a imbecilidade, a ladroagem e a cara-de-pau. Pobres de nós, tão civilizados e instruídos, quem diria?
A mim e aos da minha geração, fizeram-nos fracos. Nascemos livres sem esforço, crescemos com o dinheiro a entrar por todas as portas do país, vimos abrirem-se estradas, caírem os muros, entenderem-se os opostos, assinarem-se os tratados, aliarem-se as nações. Que promissor o mundo da minha adolescência, afinal a humanidade é cheia de boas intenções, oh, os maus topam-se à distância e a tempo nas suas latitudes retardadas e surreais. Aos vinte e cinco anos podíamos ser empresários e ter casa própria e os nossos pais bendiziam as nossas oportunidades, direitos e garantias, frutos suculentos que colhíamos do amargor, das penas e dos gritos que eles haviam plantado. E foi assim que desaprendemos o hábito da resistência e do combate, com orgulho e boa fé depusemos as armas, descansámos das desgraças do mundo, apostámos as fichas todas na realização profissional. Foi assim que fomos ficando cegos e egocentrados e agora temos os braços flácidos, os punhos frouxos, as nossas paixões são mansinhas, quase melancólicas, e ainda nos dizem que temos falta de sono, falta de sol, falta de saúde, falta de amor.
É direito de cada um escolher a quem deve obediência, em que mãos entrega o seu caráter para efeitos de desresponsabilização, sob o jugo de que rédea o seu passo é acertado. E a História está cheia de fracas escolhas. Mas nós, pior, já nem sequer escolhemos e assim acabaremos por devolver, de cabeça baixa e na mesma bandeja em que nos foi dada, a herança dos nossos pais.