Não há volta a dar: a rapariga da papelaria murcha quando a vida lhe corre de feição, como se a felicidade lhe fizesse sombra. Os doutores da psique e outros que naveguem nessa órbita terão entendimento para decifrar a causa do seu absoluto desinteresse por caminhos solares e sem espinhos, do prazer nas zonas turbulentas do amor. Não os havendo por perto, temos as velhas, sempre tão dispostas a elaborar em torno do mesmo facto durante horas, minuciosas no exame às coisas do espírito, insatisfeitas com versões redondas e acabadas. Eu, embora tenha entrado na papelaria só por rotina, com o pensamento a vadiar e os trocos já na mão para encurtar a estadia, assusto-me com o que para ali vai. Muitas são as acusações que enxovalham a dignidade feminina desde que há vida na terra: delírio, maledicência, inveja, feitiçaria, mesquinhez, manipulação, conluios vários de causas obscuras e outros delitos que – palavra de homem! – desarranjam o mundo. Mas se houver culpa que nos possa ser imputada é a da multiplicação do real. Quando um grupo de mulheres divaga, nada se livra do risco de ser estilhaçado em infinitos matizes e dimensões. A verdade caminha com pernas frouxas, só por gosto, na borda dos precipícios, onde a vista sobre o abismo se confunde com a do absoluto. E é com esse embalo que a rapariga da papelaria atira, muito enfunada, no instante exato em que me devolve as moedas que, por distração, lhe dei a mais:
– Sinceramente, às vezes o amor até dá sono.