8.8.22

Durante a vaga de calor, os meus sonhos noturnos alcançaram o cume da malícia, da desgraça e da glória. Intermitentes e transpirados, enredaram e desenredaram compulsivamente como certas maneiras de narrar que desprezam os rigores da forma para (ou por) efeitos de atordoamento mental. Esqueci-os entretanto quase todos. Não durmo com lápis e papel à cabeceira, embora saiba que das viagens do inconsciente se pode extrair matéria preciosa para fins diversos e quase sempre úteis às artes e à ciência. Só lembro ainda bem, talvez pela estrutura coerente – a memória engata melhor na lógica do que no absurdo – aquele em que a minha amiga Eduarda decidiu voltar para a terra das auroras boreais. Veio despedir-se de mim de madrugada. Dentro do carro, o marido ao volante, as crias chorosas aninhadas no banco traseiro, ela apressando o abraço, depois os acenos, temos de ir, temos de ir, e tudo no seu rosto era pavor e desespero. Não foi a partida dela que me angustiou, somos já habituadas a esta forma de amizade. Foi o breu e a ideia de que a emigração, repetida pela segunda vez na sua vida, não mais era um projeto ambicioso, mas antes uma fuga, uma urgência, um ato clandestino. Qualquer coisa os perseguia com ganas de besta selvagem, qualquer coisa como um colapso, uma miséria, uma vergonha, um crime, um país faminto a chupar até aos ossos a dignidade dos seus filhos. Mais um sussurro pela frincha da janela, adeus, e o automóvel arrancou. A noite abocanhou-os num tumulto de poeira e vento, primeiro engoliu as formas, pouco a pouco a luz dos faróis e finalmente o ronco do motor, até a solidão, por demais aflitiva, me despertar. Mas é sempre tão demorado e difícil o tempo que as impressões dos sonhos levam para se desprenderem do corpo!