2.5.22

A primeira mulher que eu me lembro de querer imitar foi a Maria Emília, empregada interna dos meus vizinhos do andar direito, nascida num fim de mundo que não recordo, com cabelos de seda e saias plissadas acima do joelho. A Maria Emília tinha um quarto só para ela, privilégio que a caçulas de famílias numerosas jamais seria possível. Era uma feminista pura, de vísceras e vontades, mas na ignorância de o ser. Àquele tempo, neste país, o feminismo nomeado como tal só era atribuído a mulheres cultas e iluminadas que publicavam poesia e apareciam na televisão. A Maria Emília disso estava bem longe, mas aos dezoito anos já era desenraizada, sensual, independente e namorava em bancos de jardim sem prestar contas a ninguém. Enquanto cozinhava, limpava ou cosia, contava-me histórias das entranhas esfomeadas do país de onde era migrada, que tinham sempre um tempero de sobrenatural e eram enredadas em torno de invejas, bruxaria, bênçãos e vinganças do além. Na boca dela andava quase sempre o Fadinho da Ti Maria Benta –  não olhes para mim, não olhes / que eu não sou o teu amor / eu não sou como a figueira / que dá fruto sem flor – e estes versos, que ela cantava com alegria meneando as ancas, excitavam cada fibra da fêmea de que a minha meninice era já projeto. 
Creio não ter havido ninguém na infância que me deslumbrasse tanto como a Maria Emília. Eu queria tudo o que ela tinha e tal qual ela tinha, a textura apetecível do cabelo, uma saia curta e umas ancas dançantes, um quarto só para mim ao lado da cozinha para que os adultos não ouvissem os rumores da minha intimidade e um namorado aos domingos, que me desejasse com fervor, me beijasse com competência mas não me aborrecesse muito durante o resto da semana. A Maria Emília foi minha amiga, minha professora, meu modelo inteiro e honesto de mulher. É verdade que as minhas irmãs e a minha mãe eram abençoadas em beleza e inteligência, mas o que tinham não havia sido conquistado com revolução ou sacrifício. E, de resto, quem me salvou das tardes de tédio e dessa espécie de abandono em que caem os caçulas quando a família está cativa de assuntos sérios e entretenimentos sofisticados, foi ela, a Maria Emília, que não era como a figueira.