15.12.21

Ao fim de semana ocupo-me a lamber as feridas do rapaz voador, enquanto ele conta histórias sobre os dias da sua ausência. É um bom narrador, afia todos os detalhes, imita as vozes, deforma-se, faz-me sonhar, distrai-me das horas, da sopa, do assado, da torneira que pinga. Sempre soube que ele havia de ser como é. Tão cuidadoso a nascer, não me causou dor nem dano, porém, ao invés do irmão, que ao primeiro sopro se agarrou a todas as partes do meu corpo como um bichinho desamparado, este olhou-me com condescendência e profundidade e eu vi, juro que vi, a malha enredada dos seus pensamentos, o voto de lealdade, as ganas de lonjura e adrenalina. Tenho-lhe este amor espantado e ansioso, escolhê-lo-ia entre milhões, ainda que nem uma gota do seu sangue fosse minha.