9.11.21

Gabi, a manicura sonsa, faz as contas à hora em que o Marco do ginásio passa e posta-se à entrada do salão, desentendida, como quem só aproveita uma aberta para ligar à mãe ou respirar sem máscara. Interpreta o seu papel, faz o que todos fazemos – uns por interesse, outros por sobrevivência, muitos por hábito simples – até mesmo os que se dizem genuínos e espontâneos pois caso contrário não gastariam um segundo a apregoá-lo. 
Então, aproximando-se a hora em que o Marco passa, Gabi começa a fabricar o seu destino encenando o acaso e impõe a conversa nem que seja pelos assuntos do tempo, que são ótimo engodo para peixe ligeiro. Sorte a dela, ele ser bem educadinho e nunca seguir sem cumprimentar. Esclarecidas as questões climatéricas, outras oportunidades se abrem e ambos investem sempre ali uns cinco a dez minutos de conversa, o tempo de vida do cigarro dela ou de a cabeleireira vir cá fora lembrar quem manda:
– Oupa, filha, que a sotôra Filomena já 'tá à espera.
Nesses pequenos encontros quotidianos, o Marco do ginásio expressa nada mais do que simpatia. Gabi teria de comer muita massa para ser olhada com o assombro com que ele olha a rapariga da papelaria. A trágica, ausente, caprichosa, terna e complexa rapariga da papelaria, sem mais interesse no amor, servindo de bandeja à clientela os seus episódios de fraqueza e derrota, atiça-lhe a curiosidade e o medo. Gabi, a fumar à porta do salão, terrena e maleável, debruçando a conversa sobre os humores do clima e trivialidades afins, simplifica muito a vida, aplana-a, tapa os abismos e põe fora os imprevistos. É pouco fascinante mas, para compensar, nada trabalhosa. Pode mantê-la ali em lume brando sem risco de surpresas. De qualquer coisa que ele diga, por mais imbecil, ela rir-se-á daquele riso que vem inflamado desde o meio das pernas e há de haver uma hora em que ela diga ando cá com umas saudades de comer uns filetinhos de pescada lá prós lados do cabo do mundo e ele não terá como escapar, porque escapar também requer alguma coragem.