20.5.21

Saio finalmente de casa à procura do mundo mais fraterno e consciente que os otimistas juraram que havia de erguer-se dos destroços. Estava sinceramente disposta a repreender-me por descrer da humanidade e ter menosprezado o poder de um vírus na transformação das coisas essenciais. Ensaiei o sermão que, na volta, me daria ao espelho. Agoirenta, fraco exemplo para os filhos, onde raio vou buscar motivos para duvidar que o que vem é sempre melhor? Mas quando saio só reencontro o caos. Os automóveis levados em solidão, os insultos pelas frinchas dos vidros, o lixo amontoado nos contentores, as crianças com as costas vergadas ao peso injusto de mochilas, instruções e avisos. Lá está a rapariga que madruga para suar no crossfit, à mesma hora de antigamente, sovando as palmas das mãos do treinador com uma ladainha de motivação que não há de diferir muito da que a minha avó rezava à virgem Maria. Nos semáforos do cruzamento maior, os gatos vadios desarrumam o ecoponto e os toxicodependentes mendigam a sobrevivência. Um deles, de barba e cabelo ruços, parece-me um cristo a perguntar porque o abandonaram depois de o deixarem cair em tentação.  Ouço dizer que à porta das lojas de roupa e sapatos as filas são tão grandes e teimosas que parece dali esperar-se o pão para a boca. Todas as artérias estão entupidas e se não é pelo trânsito há de ser pelas obras. É preciso insistir na transformação da cidade, agir como se nada fosse, cavar fundações, alargar estradas, abrir terraços com vista, operar os fluxos subterrâneos. O progresso continua, valente, ruidoso, cheio de ideias e estratégias, mas que cura traz ao desespero e ao cansaço? Abre e fecha, tira e põe, faz e repete, repete, repete, repete, repete. 
Lá longe, o mar está tão bonito e eu podia fazer dele um verso ou um retrato, elogiar as maravilhas do mundo, dar graças aos deuses pelas magnificências da sua criação, legendar as sobras aproveitáveis do dia com a importância das pequenas coisas. E depois seguir em frente, a fazer de conta que sobre o resto não ouço, não vejo, não sei.