7.4.21

 – Então, eu também tenho os meus defeitos, mas ao menos admito-os.
Prega a rapariga da papelaria à mãe mas, em boa verdade, é por toda a fila de espera que quer ser ouvida. Está num daqueles dias de fulgor e otimismo que costumam suceder abruptamente a outros de pasmo e melancolia. As velhas usam mil cautelas antes de lhe dirigirem a palavra porque se calha brincarem com ela num dia em que acordou de humor caído ainda se põe a chorar, muito ofendida. Mas se está como hoje, ai de quem for ali queixar-se do mundo ou de má sorte, porque toda ela se empolga a varrer sem piedade pessimistas, descrentes e seus cúmplices. Nunca é certa, mas atire a primeira pedra quem de entre nós for.
– Admites, admites… 
Responde a mãe, a revirar os olhos nas costas da filha para que a ironia não escape à plateia.
– Se quer falar, fale, mãe! Ou julga que me envergonho?
– Olha, pra começar, és teimosa.
– E teimosa é lá defeito? Sou mas é burra, é o que sou. Burra! E só eu sei onde já estava se não fosse…
Sorri levemente, a mostrar que se perdoou os erros cometidos. Já a mãe, essa apruma-se na cadeira, ajeita as bordas do casaquinho de malha como se para um instante de solenidade a chamassem de repente, e dispara:
– Sais ao teu pai.
As velhas agitam-se com a ofensa ao defunto. Dona Fátima, por amor de deus, acabámos de sair da páscoa e das igrejas, os corações ainda estão perfumados com resquícios de fé e condescendência cristã e já estamos a maldizer os que o senhor escolheu salvar chamando para junto de si? De resto, sublinham, a rapariga é burra coisa nenhuma e quem o disser fala de cor porque salta à vista como é educada, bem falante, mãe extremosa e com muito brio no atendimento. A cabeleireira, que em boa hora o desconfinamento ressuscitou, espreita à porta e acena, mas, duvidando do ar que lá dentro se respira, só atira de fugida: teve um azar, prontos, mas ninguém está livre. 
A mãe da rapariga da papelaria encolhe os ombros, envergonhada do que disse, orgulhosa demais para desdizer. A filha continua a sorrir e se for verdade que alcançou o mérito de enfrentar as próprias falhas, nomeá-las e perdoar-se por elas, não será para os outros que vai armar-se em juíza. Mas quando tudo parece apaziguado, eis que Alicita se levanta detrás da fotocopiadora, de entre uma feliz desarrumação de papéis e lápis de colorir. E apontando o dedito à rapariga da papelaria – que calha de ser sua mãe – põe-se a cantarolar, com a alegria própria dos inocentes que, apesar de ignorarem o mal, se envaidecem de tão depressa e bem o aprenderem:
– Burra! Burra! Burra!