20.4.21

Começando a semana da Queima das Fitas, íamos três seduzir o pai da Débora. Se não houvesse ritual de pedinchice, de preferência algum espetáculo de humilhação, ele não a deixava sair, nem para um café, quanto mais para uma noitada. Enquanto for eu quem te sustenta, fazes conforme eu mando e um dia que te cases, aí entendes-te com o teu marido. 
Era uma moradia de dois andares que ele se envaidecia de ter levantado com as próprias mãos, numa travessa da zona oriental da cidade. Quando lhe entrávamos pela sala dentro, esforçava-se muito para encobrir a ofensa que a nossa disposição lhe causava e punha-se logo a ensaiar modos do cavalheiro que não era: ó Maria, traz os calcezinhos e a garrafa de vinho do Porto pr'estas meninas. Nem por favor. A mulher saía detrás dele como um passarinho, muita vergonha e uma bandeja com quatro cálices embaçados, conta certa para ele e para nós, que por decisão do senhor mãe e filha não bebiam. Depois, de onde éramos, se os paizinhos não nos punham horas para chegar, se namorávamos, bebíamos ou fumávamos, quem nos levava, quem nos trazia. Dávamos todas as respostas como se de facto lhas devêssemos mas mentindo em algumas porque sem artimanhas a Débora ficaria por casa. Também não doía assim tanto, o essencial era conter bem todos os ímpetos que nos moviam à festa, usar beicinho e humildade, vá lá, por favor, deixe, prometemos que não a perdemos de vista, e misturar muito bem as falsidades que nos ocorriam, que casa linda, que zona calma, que vinho incrível.
Quando se achava satisfeito com a bajulação e seguro do seu poder, vá, desta vez deixo. Acompanhava-nos até à rua e aí inventava pretexto para mais dois dedos de conversa, dando tempo à vizinhança de testemunhar o êxito do cinquentão todo espraiado na vida e bem relacionado com a juventude. Depois, com um gesto teatral sacava do bolso um maço de notas e lambia o dedo para fazer deslizar duas: toma, paga um sumo às tuas amigas. Um sumo, com certeza.
A Débora sabia que na manhã seguinte ia apanhar, por motivo real ou imaginado, mas não só estava disposta a pagar o preço como a considerá-lo justo. Amava o seu carcereiro com devoção e orgulho. Louvava-lhe a têmpera, contava de ele ter atravessado intacto uma infância mal amada, depois uma juventude de penúria, mil infortúnios e indignidades, e ao cabo de tudo, assim que se fez homem, com quase nada nas mãos construíra aquela casa. Desde então, nem um dia de férias. Tudo para a criar, mantê-la em escola privada, dar-lhe a carta, o ensino superior e tudo o mais que ela precisasse, filha única, princesa, joia do seu coração. Sair é que nem pensar, que tirasse a ideia de namorar ou exibir-se em esplanadas, festas e discotecas. Muitas vezes, incapaz de engolir as ganas de liberdade, a Débora virava-se a ele mesmo sabendo que levaria o troco na pele e de cinto. E se depois lamentava não era pela dor da tareia, mas pela certeza absoluta e quase feliz de que não se paga com insurreição àqueles a quem tudo devemos. Então, chorava o arrependimento no colo da mãe, uma santa que a ensinava a levar pela calada a água ao seu moinho. 
Por isso, quando a certa altura – fatal como o destino – a Débora me pedia imita o sotaque lá da tua terra para o meu pai ouvir, ó pai, é tão cómico como as pessoas falam no interior, como se eu fosse um macaco migrado de lonjuras atrasadas e incivilizadas, eu chegava a perguntar-me se os meus pais, sempre tão cheios de justiça, sensatez e diálogo, me teriam educado convenientemente.