21.10.20

Uma desgraça nunca vem só e para confirmar estes e outros ditos vê-se, uma vez mais, a família Pereira abalada na sua folclórica estabilidade. Bom, talvez não se possa chamar desgraça ao natural apagamento de uma vida quase centenária. A velha muito velha foi-se em fim de tempo, como é próprio do que, por sorte, escapa no caminho a acidentes e agressões. Desgraça, isso sim, foi a decisão tomada pela imperatriz e anunciada no rescaldo do luto. 
Nunca os Pereira sonharam depender tanto dos humores de uma rapariga vinda da província para hastear a bandeira do feminismo e da independência precisamente ali, na casa onde estava tudo tão betonado que nem as traições faziam grande mossa (as birras levadas a cabo pelas manas não entram na contabilidade, já que se fizeram e desfizeram com mais ligeireza do que as da primeira infância). Sequer os avós Pereira imaginavam que aquela que lhes deu a maior graça das suas vidas ao abençoar a família com uma descendência viril poderia ser outra coisa senão o que até agora tem sido: uma mãe sensata, inteligente, disposta a salvaguardar as necessidades e direitos do filho, contribuindo de forma exemplar  e sabe-se lá com que sapos atravessados na garganta  para que Joaquim construa por si uma relação com a família paterna, de valores tão opostos aos dela. 
Não haverá muitas capazes de um malabarismo tal e a quem passe ao lado a tentação mesquinha de entrar com as desavenças, os rancores e as faturas na educação dos filhos. Porém, a imperatriz é pouco dada a rivalidades estéreis, além de que Joaquim não é para ela um troféu, um instrumento ou uma salvação, mas um feliz incidente, uma trapaça do corpo, enfim, um delicioso acaso. E a pureza dos acasos  porque não são delineados ou corrompidos por nenhum projeto ou ambição, porque desafiam a vontade e a convertem   é um valor a preservar. De resto, o amor que a imperatriz tem ao filho justifica os esforços e as concessões. Por ele, suporta os Pereira e o seu desejo de atribuírem a Joaquim a responsabilidade de desfazer o sarilho de disparates e conveniências em que vivem. 
Nós, que assistimos a rir e pensamos que seria de outro modo caso fossemos os protagonistas, ainda assim comovemo-nos ao ver o senhor Pereira desmoronar-se diante do neto. Pese embora o machismo subjacente a este afeto privilegiado, sempre tivemos fé de que daqui viesse uma revolução de lógicas e princípios capaz de destituir a frieza da autoridade vigente e abrir caminhos novos, mais apaziguados para toda a família, onde até as manas se sentissem mais ouvidas e amadas e o mano inútil ganhasse finalmente um brilho próprio. Mas a vida, enfim, dá as voltas que sabemos e apanha-nos na curva, quase sempre distraídos e de mãos nos bolsos.

E toda esta conversa para quê? Os factos, sendo o que são, não podem ser amenizados nem evitadas as suas consequências só porque fazemos esta resenha de prós e contras, com perspetivas e contrapontos. Mandar a razão à frente para aplanar terreno a ver se suaviza o derrapanço, nem sempre resulta. Mas a verdade é que também a mim me custam certos episódios e adio a hora de os contar. E ter dito logo, a frio e à cabeça deste texto, que a imperatriz vai voltar a viver em Penedono e leva com ela Joaquim, como se viesse a propósito ou fosse coisa menor, não me parecia bem. Não me parecia nada bem.