Hoje a rapariga da papelaria não vem trabalhar. É o aniversário de Alicita, lembra-se?, pergunta-me a avó, que está a fazer as vezes da filha no atendimento. Como não? A menina, nem três mil gramas de gente e ainda assim teimosa, fincou os pés no ventre materno, sair só à força de bisturi ou pela mão de um carrasco. Alicita não havia de querer fazer sofrer a mãe, mas fez. Submeteu-a a tantas horas de espera, dor e sufoco, que deu tempo de acordarem dois sóis. Da cesariana, a rapariga saiu a jurar que nunca mais, julgando, na legítima e conveniente ingenuidade de quem sobrevive ao esforço de parir, que o pior da maternidade ficara para trás, no bloco, diluído em sangue, placenta, líquido amniótico e outros destroços animais. Um dia, a mãe contará à filha sobre esse quinze de outubro de dois mil e dezassete. De como, na manhã seguinte, enquanto ambas restauravam, docemente, sem mágoa, os estilhaços da violência que atravessaram juntas e se entregavam à placidez daquele amor acabado de inaugurar, as gordas dos jornais escancaravam o inferno e a vergonha no balcão da papelaria.