5.8.20

A rapariga da papelaria desce a rua de cara amarrada e naquele passo veloz que se usa para gastar num instante a raiva toda. Motivos, lá os terá e faz bem em calá-los porque com o mal de uns enchem às vezes outros o bandulho. No caso dela, porque exala um cheiro intenso a abandono e desistência, é um fermento para a imaginação alheia e inspira todos quantos vivem de dar conselhos como os que treinam da bancada – que não perca mais tempo com essa dor, cuide de si, vista outra coisa, olhe em frente, dê-se a outro homem. Então não pode cada um fazer da vida o que quer, comprometer-se com a sua melancolia, cismar nas suas mágoas, mastigar as suas lembranças ou até amputar os membros sãos se daí lhe vier paz? Quem é quem para dar à rapariga da papelaria a bula da felicidade, quem chegou ao ponto em que, de tão feliz, já só lhe resta morrer? A mãe, que nas palavras duras que lhe diz põe sempre a fatura dos seus próprios fracassos porque em vão sonhou que a filha havia de ganhar de sobra para pagar pelas duas? A cabeleireira, mais a sua moral entusiasta sobre os benefícios do sétimo sacramento com pensão completa e descontos ao marido? Gabi, santinha de pau oco e língua bífida, que revira os olhos nas costas das senhoras a quem desbasta as garras? O senhor Pereira, polidinho nas maneiras e remediado no caráter, mais a sua mulher que a vida toda o comeu requentado ao fim do dia, primeiro por ignorância depois por falta de saída? A viúva, que ninguém sabe se na verdade partiu com o homem que amava e agora ostenta apenas o que ficou para trás, como coisa que para ela já vale nada mas que ao menos dá, a quem olha, a felicidade de sonhar? A imperatriz, que não foi abandonada pelo pai do filho mas escolheu abandoná-lo, o que, enfim, revela a desgraça maior que é ficar aquém de amar? As manas Pereira, tão virtuosas e bem sucedidas, de íntimo atormentado pela ideia de que todos os homens – até os seus – possam um dia parecer-se com o pai? A dona Maria Isabel, doutora de ciências com a má fama de serem exatas, cuja independência e firmeza de emoções jamais permitiriam entender quem por amor se tenha desanimado tanto? As pessoas dos blogs, que nos seus estendais públicos deixam, sem vincos, belas cogitações teóricas sobre amores suspirados como o dela e outros tantos de romance e ideal? Eu, que jamais sequer amei dessa forma religiosa, sem identidade nem retribuição, e descarto as dores junto com o lixo ao fim do dia porque tenho repulsa a tudo o que dura demasiado?
Talvez, no entanto, nada de grave tenha havido com a rapariga da papelaria. Apenas um enguiço, uma avaria na máquina da roupa, os jornais que não chegaram a horas, Alicita a inaugurar o dia com uma birra daquelas. Coisas poucas, nada de nada, deus a polvilhar o quotidiano de misérias e cada um de nós a acreditar que tudo isto é muito mais, para justificarmos as angústias com que nascemos.