1.4.20

Posso competir com todas e para todas chego se perder o pudor e a humildade. Não vacilarei ao encostar a lâmina no pescoço esquálido da sentimental, cujas artérias choram aos soluços as sílabas do teu nome. Também serei rápida nos pulsos da melancólica de pantufas, poupando-lhe o encargo de te chantagear com o pretexto dos nervos fracos. A intelectual? Não me faças rir, que há mais no meu pensamento às sete da manhã de um domingo do que em tudo o que ela reteve dos livros com que encena a devoção ao conhecimento. A generosa, deixarei que se canse a alardear as suas bondades, esmolas e cuidadinhos e depois, só para ti, falarei do que ainda ninguém me ouviu contar. Nenhuma tem virtude que não possa ser superada ou defeito que eu não possa usar a meu favor. O que me parece impossível é competir com aquela que sonhas, pois essa é de substância maleável, podes tê-la de acordo com a necessidade dos dias, forte, doce, calada, despida, rebelde, e podes mandá-la embora e ela não terá orgulho bastante para negar o regresso quando lho pedires. Entra-te pela casa a qualquer hora atravessando paredes porque não tem corpo a não ser quando o desejas. Deita-se sobre ti sem ruído e conforme a tua vontade, encaixando-se na medida certa, no instante exato, em perfeitas condições de temperatura e humidade. Se pressentires que está perto de te dececionar, ou porque te cansas das suas graças ou porque te desgosta o género das suas calcinhas ou porque não te espantam mais as suas ideias, dás-lhe uma volta, um tempo, um retoque, sacodes a mão, desfazes e refazes o sonho. É por isso que, ainda que seja meu o nome e o rosto que lhe dás, sairei sempre derrotada da batalha contra ela.