25.3.20

Eu já não tinha uma orquídea desde a morte de Julieta, caída da janela por amor a um gato vadio, de cor preta, que em patinhas de lã nos rondava a casa despertando sonhos impossíveis naquela corola tão aberta e inocente. Deu-se a tragédia, se bem recordo, numa manhã de sábado e eu tomei para mim as culpas que não tinha, acusei-me de negligência grave e condenei-me a nunca mais ter à minha responsabilidade flor alguma, muito menos espécies sensíveis que se apaixonam por gatos sem nome nem residência fixa e por eles se debruçam fatalmente nas janelas. Passei a rodear-me apenas de plantas dispostas a aceitar a vida como ela é, sem sentimentalismos ou caprichos desajustados à sua condição e que me dão mais benefícios do que aqueles que me exigem. Enfim, confesso que até vejo na resignação uma virtude meritória se me facilitar os dias. De modo que tenho a casa cheia de lírios da paz, espadas de são jorge, arecas, dracenas, clorofitos, heras, todas em pacífica e feliz coabitação.
Mas uma orquídea foi desenhada para desarrumar os corações humanos, há de ser obra do demo ou das horas vagas de deus, quando ele já não sabia o que fazer à criação e, para se entreter, a polvilhou de miúdos venenos, feitiços e armadilhas. Os poucos que resistem a orquídeas é certamente porque nunca tiveram uma. Uma vez postos os olhos na sua beleza, em estreita afeição e cuidado, está tudo perdido.
Trouxe então, há quase um ano, uma nova orquídea para esta casa mas decidi não lhe dar grande importância, que é logo modo de pôr travão aos abusos. Nem sequer escolhi a mais bonita. E por receio de uma vez mais ser inútil o investimento de tempo em estudos detalhados sobre água e iluminação, pousei-a onde me deu jeito e por lá ficou, borrifada ou regada se calhasse eu lembrar-me. Depois de lhe caírem todas as pétalas – pela imposição dos ciclos da natureza, note-se –, mudei-a de lugar e escondi aquele desconcertante esqueleto debaixo de uma areca, regando-o de longe a longe com um desleixo propositado, como quem diz: toma lá e faz-te mulher, se for para sobreviveres, sobrevives de qualquer maneira. Passaram meses, até que a Luísa reavivou a memória das orquídeas e eu fui espreitar e dei com seis botões muito verdes e redondinhos no braço mais longo desta, que – juro! – nem lembro de que cor é. Entusiasmei-me, claro. Mas, por via das dúvidas, depois de tirar o retrato à janela voltei a enfiá-la junto da areca, não vá dar-lhe a mania das grandezas e, como a outra, apetecer-lhe provar do que não lhe é destinado.