É evidente que a maneira menos arriscada de sonhar é acordado. A única desvantagem é a permanente vigilância da razão, que quase sempre obriga a manter um certo nível de lógica e subsequente mediocridade. Uma destas noites, por exemplo, era certamente profundo o meu sono quando atravessaste toda a plateia ao meu encontro, apoiando-te nas costas das cadeiras para evitares tropeçar nas pernas das senhoras e nas cerimónias dos homens. Eu preparei-me, supondo que tencionavas apertar-me a mão e, afinal, o que tinhas para me dar era um beijo. Foi assim que fiquei a conhecer por dentro a tua boca. Que surpresa. Julgava que tivesses um beijo mecânico, cheio de rigores, aprendido em diagramas e manuais ou domesticado por uma só mulher a vida inteira. Felizmente, nem isso nem as aflições púberes de que padecem certos homens na maturidade. Mas se agora, bem desperta, me ponho a pensar nesse beijo em busca de palavras que o descrevam, que deem as medidas da sua temperatura, duração e consistência, creio que não só perderei tempo como me arrisco a esquecê-lo. O verbo deslassa a memória, deixa ir, diminui, perspetiva, facilita, por isso se recomenda a escrita como terapia. E eu quero lembrar assim a magnífica reputação que construí para o teu beijo na periferia alvoroçada da minha consciência, enquanto dormia profundamente. Deus nos livre, a ambos, de algum dia verificar que o meu sonho pecou pela generosidade.