29.1.20

A rapariga da papelaria admite que talvez o seu sonho de amor a tenha distraído da vida. Não fosse o tempo gasto a pasmar e a desenhar mentalmente vestidos de noiva e beijos de comprometimento, podia ter ido mais longe, um curso superior, um emprego de jeito, umas férias à vontade. Por si tanto dá, nunca foi ambiciosa, mas custa-lhe não ser exemplo para Alicita. A filha merecia um modelo de persistência e realização, ao invés de ouvir falar da mãe como uma tonta que cumpriu os mínimos e gastou-se em suspiros ao balcão de uma papelaria. Buscando talvez um estímulo, uma ideia, um caminho, pergunta-me o que faço eu da vida e se gosto. Digo que gosto e que, em boa verdade, grande parte do tempo nem faço nada, só penso. Meu deus, eu lá teria cabeça para ser paga só pelo que penso! Compadeço-me e aproveito a deixa da sua humildade para exercitar a minha: não é bem assim, pagam-me por pensamentos efémeros, sem profundidade ou consequência, que berram muito hoje, amanhã são gemidos de moribundo e numa semana estão reduzidos a pó. E queixa-se? pergunta-me, como se eu tivesse disparado uma ofensa diretamente àquele peito já tão inflamado. Mas antes que eu diga não, o trabalho é coisa de que nunca me queixo, ela desata na goela um riso nervoso e, com a voz entrecortada, pica o ponto na sua rotina de auto-comiseraçãodos meus pensamentos nem o homem que eu amava quis saber.