1.2.22

A professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada esbardalhou-se à saída do pingo doce. Não sei o que se passa com as mulheres das redondezas deste blog, por qualquer motivo anda a faltar-lhes firmeza no passo e atenção às trapaças do caminho. Já o tombo da viúva me pareceu uma bizarria. É claro que tombou com brilho e classe e ainda há de ter desfrutado da inconveniência daquela fração de tempo em que as mãos do senhor Pereira mostraram o vasto alcance da sua generosidade. Não vos escandalizeis com o que digo, a viúva sabe muito bem o que quer, o que faz e o que autoriza e, de resto, há mulheres mais abusadas nas mãos insuspeitas dos seus próprios maridos do que em certos jogos que, só por estarem fora do contrato, são mal vistos. 
A professora, porém, não teve a sorte da viúva. O seu corpo descuidado, movido a pastéis, nicotina e comprimidos, sob o comando de uma inteligência que caiu no equívoco de se aplicar muito aos livros e pouco à vida e de um coração que se supõe mais semelhante ao dos poetas do que ao dos seus aprendizes, o seu corpo tombou na hora do almoço de domingo, essa hora que pertence ao reencontro das famílias e à preguiça caseira dos solitários e que, por isso, costuma ser hora morta nos supermercados. Não havia então homem – de sobrenome Pereira ou outro – com a força pronta, levantada, disponível para lhe acudir à fraqueza. Havia, sim, outra coisa qualquer a que a professora jamais chamaria homem e de que se teria afastado caso dominasse absolutamente os seus passos: um adolescente, desses que estão no auge da fealdade, da desproporção e dos maus odores, que caminham como se os membros estivessem prestes a soltar-se pelas articulações e que apunhalam a língua portuguesa amputando-a no essencial e infetando-a com tiques que daqui a cinquenta anos o dicionário será forçado a considerar. Deitou-lhe a mão o adolescente como decerto deitaria à própria mãe. Com muita cerimónia e falta de jeito, mais contrariedade do que empenho, mas deitou. Então ela, inábil na gratidão a esses que não costumam dar-lhe mais do que dores de cabeça e cansaços, tirou da carteira uma nota de cinco euros e disse: toma, compra qualquer coisinha para ti. E com esta oferta a sua alma se teria reerguido da humilhação, não fosse dar-se o caso de o garoto, abanando a cabeça, num é preciso, munt´óbrigado. 
O poder é a mais confortável de todas as invenções da imaginação, decide por nós a que serviços, combates, favores e recompensas temos de nos dispor, livra-nos dessa imensa vulnerabilidade que é a empatia.