31.5.22

Embora continuem com ar de enfado e falta de luz própria, levando-me a imaginar que foram concebidas sem o retoque final do êxtase, as meninas exemplares encaminham-se para a adolescência com uma beleza improvável. São resultado de um desses mistérios que leva amiúde dois seres pouco abençoados a combinarem os genes de forma interessante ou, pelo contrário, surpreende um casal de beldades com criaturas feiosas. Nem as manas Pereira nem os maridos invisíveis têm elegância de feições. Salva-os, em aspeto, o esmero com que se vestem e as boas maneiras em que, aliás, foram treinados ao ponto da hipocrisia social. Mas as meninas – primas, embora ligadas como irmãs no tempo que têm passado com a avó – superam essa ascendência e parecem agora redesenhar-se por mão própria, no sentido de uma fisionomia harmoniosa, delicada e fotogénica. 
Também Joaquim, nos primeiros meses de vida, parecia filho de ninguém. Mas com o tempo fomos vendo como nele se impunham as formas e as cores da imperatriz que, sendo recessivas, conseguiram dominar o sangue trivial dos Pereira até não haver, a olho nu, prova alguma da paternidade. As meninas exemplares fizeram caminho inverso, começando agora a libertar-se de pai e mãe ou a aceitar deles apenas os aspetos da herança que possam ser conjugados favoravelmente. A mulher do senhor Pereira é preciosa colaboração. Quando as tem a seu cargo, investe nos penteados, roupas, acessórios e demais mimos que nutrem a forma como espera que elas se façam mulheres. Gaba as senhorinhas e passa com elas na alameda como se exibisse a justa recompensa pelas filhas moralistas e ingratas que criou. As netas dão-lhe a impressão que, finalmente, o destino pagou uma dívida atrasada. Além de lindas, são obedientes e – por quanto tempo? – adoram-na como ninguém jamais. 

27.5.22

Os meus colegas devotam aos personagens das séries uma empatia que recusam à gente real. Gastam horas do dia a analisá-los com profundidade e indulgência, trocam ideias muito civilizadas acerca do que possa motivar os desvarios, os crimes, as vinganças e as molezas de caráter que alimentam o enredo. Compadecem-se: oh, quem nunca? Tanta e tão comovente humanidade, porém, esgota-se em frente ao ecrã. Para os outros, de carne osso, que habitam as durezas exteriores à ficção, os que estacionam em cima da rampa, assaltam o mercadinho da esquina, traem a melhor amiga, para esses é o quero lá saber, por mim até podem morrer, gente dessa não vale nada. A professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada também se deslumbra, nos poetas, com o mesmo que nos alunos lhe causa asco: desgraças morais, maus vícios, cinismo, arrogância, insurreição. Não é muito diferente dos meus colegas. Assemelham-se na preguiça sentimental, desperdiçam a nobreza do coração nas distâncias experimentadas a partir do sofá e da sonolência domingueira, mas cansa-lhes muito a gente insuportável de todos os dias. 

24.5.22

E então – diz-me a minha sobrinha emigrada na vizinhança da guerra – as coisas têm sido mais ou menos assim. 
Pega no telemóvel, dedos para trás e para diante a abrir as cortinas de um espetáculo de sangue e desespero, filmado por dentro. 
Estes são todos portugueses – explica-me – também lá estão mas ninguém diz nada e morrem como tordos no sobrevoo das cidades inflamadas para onde se lançam sem hesitar. Se pensam duas vezes, empurram-nos. É para isto, só para isto e nada mais, que durante meses ou anos se treinam os militares: para aperfeiçoarem a vocação do suicídio. Estes rapazes levantam voo no doce engano do romantismo, a juventude é traiçoeira e troca as voltas à significância dos verbos, fá-los tombar em sacrifício vão, no erro repetido, na desumanidade legitimada. Heróis serão as pessoas quotidianas e vulgares, que resistem a tudo sem uma causa maior, sem chamamento, promessa ou louvor.
E anda uma mãe a criar um filho para isto – suspira agora a minha irmã. Estranho-a, não é habitual socorrer-se de chavões. Mas testemunhando aquele horror, vendo a rapidez com que o fogo consome os paraquedistas como se fossem papel, quem se preocupa em ser elegante ou original? E, verdade seja dita, com meia dúzia de máximas e provérbios se conta a tragédia humana. A culpa de nos supormos maiores ou merecedores de mais é de poetas e dramaturgos.
Acordo então em sobressalto, acendo a luz, agarro-me com unhas, dentes e razão à realidade possível, à solidez do quarto, estarão bem os meus filhos? Na minha cabeça ainda ardem os rapazes, a sua carne viva continua a derreter, a sua bravura desmaterializa-se debaixo dos olhos de deus e da humanidade. São quatro da manhã, a mais imisericordiosa das horas noturnas. Desfaço a cama toda nas voltas do corpo. Os paraquedistas ainda ardem. Creio então que, pela primeira vez na vida, pego num livro no meio da noite e leio, leio, leio, leio até ao canto dos pássaros, que é a salvação dos insones.

18.5.22

Antes de abrir o salão, Gabi passa à porta do ginásio, aninha-se na musculatura do amante e prolonga os beijos como se fossem os últimos. Gosta de exibir os benefícios da sua conquista, sabe que o Marco é o ai jesus das velhas, quantas vezes as ouviu, à roda das raspadinhas, a suspirar pela felicidade dele, tomara que encontre uma mulher que o trate bem. Pois então, ei-la. Pertence-lhe o prémio porque teve o mérito e enganaram-se os que supunham que o destino reservaria para ele um final feliz com a rapariga da papelaria, essa que vive de cara amarrada e a quem o abandono tornou desdenhosa ao invés de humilde. Era o que faltava, o amor não é o fruto de acasos e nem sequer floresce na desarrumação sentimental ou na sombra de espíritos desiludidos. Está escrito nas revistas do salão, seis dicas infalíveis para conquistá-lo e nenhuma é fazer-se de coitada. Gabi aplicou-se muito, riu das graças dele, adequou as maneiras, os interesses, aprendeu sobre proteína e burpees e tornou-se uma dessas ex-fumadoras cheias de moral e arrogância que tomam para si a tarefa de orientar os mais fracos: nem sabes o mal que isso te faz. A cabeleireira encanita-se, querem lá ver que já não se pode fumar um cigarro em paz? e nestas alturas talvez lhe dê uma saudade franca da outra manicura, tão desastrada nas conjugações pronominais como lúcida na análise dos fenómenos amorosos. Podia ter igualado a proposta do salão do centro da cidade e talvez ainda a tivesse por lá, cheia de graça e exuberância, disputando com a dona Maria Isabel a última e mais sabedora palavra nos debates de sábado. Mas as coisas estão difíceis para todos e a inexperiência de Gabi, há que reconhecer, trouxe pelo menos dois benefícios à gestão da casa: disponibilidade e poupança. Talvez o Marco do ginásio tenha uma visão semelhante: quão mais trabalhosa seria a sua vida caso a rapariga da papelaria tivesse ficado com ele? Digam o que se disserem, Gabi é uma bênção.

17.5.22

Não esvazies a dignidade dos teus semelhantes tratando-os de forma paternalista ou piedosa, ofendendo a sua dor com lugares-comuns, afagando-lhes a cabeça como à dos cães mansos, porque te igualas a um desses arrogantes que deixam esmola ao pobre não para que ele coma mas para que notem o seu ato. Cuidado, porque a benfeitoria apressada acaba a tropeçar na tentação da fanfarronice. A dor alheia não é um fosso que possas tapar com palmas de flores e onde laves a tua consciência do pecado da distração quotidiana. É um monumento para visitar em respeito, levantado com sacrifícios que desconheces, porque não eram tuas as mãos nem te atolaste nas funduras de onde sobressaíram os seus alicerces.

11.5.22

O elevador atende à minha chamada urgente e, ao abrir portas, dá-me o retrato da família de cima: o meu vizinho charmoso e inútil, a mulher que geme à noite debaixo dele como um eletrodoméstico, o diabrete a guinchar como se dez garras de monstro lhe arrancassem a alma, as tralhas que carregam para que mais um dia se cumpra sem imprevistos. 
– Cabemos todos, convida ela. 
Sorri de modo tão esforçado que me entristece. Digo não e viro a cara, abro a carteira numa busca falseada de qualquer coisa que pouco importa, chave, telemóvel, bálsamo para os lábios. Tenho pudor em olhar, conhecendo a sua infelicidade do tanto que me contam as paredes mal isoladas. Perturba-me ver neles que grande parte da vida que levamos é dedicada à resolução de enguiços. Saciar a fome, tratar a doença, matar o desejo, mitigar a dor, providenciar o repouso, sacudir as penas, esclarecer mal entendidos, enganar a solidão. Não há o que não seja para ultrapassar um problema, evitar um conflito, contornar uma fatalidade. Escapar a uma coisa é, invariavelmente, a causa maior de conquistarmos outra. Ou vice-versa e tanto faz. As paixões, tomadas como atos libertários e libertadores, não são muito mais do que o esbracejar dos sobrevivos. E gestos nobres, de bravura ou abnegação, são só reforço de capital para não morrer na penúria de caráter, no fosso do esquecimento, na indiferença de deus. É assim que se pinta de cores vivas a ordinária flutuação dos dias, o sobe e desce do elevador. E a vizinha tem razão: cabemos todos. 

2.5.22

A primeira mulher que eu me lembro de querer imitar foi a Maria Emília, empregada interna dos meus vizinhos do andar direito, nascida num fim de mundo que não recordo, com cabelos de seda e saias plissadas acima do joelho. A Maria Emília tinha um quarto só para ela, privilégio que a caçulas de famílias numerosas jamais seria possível. Era uma feminista pura, de vísceras e vontades, mas na ignorância de o ser. Àquele tempo, neste país, o feminismo nomeado como tal só era atribuído a mulheres cultas e iluminadas que publicavam poesia e apareciam na televisão. A Maria Emília disso estava bem longe, mas aos dezoito anos já era desenraizada, sensual, independente e namorava em bancos de jardim sem prestar contas a ninguém. Enquanto cozinhava, limpava ou cosia, contava-me histórias das entranhas esfomeadas do país de onde era migrada, que tinham sempre um tempero de sobrenatural e eram enredadas em torno de invejas, bruxaria, bênçãos e vinganças do além. Na boca dela andava quase sempre o Fadinho da Ti Maria Benta –  não olhes para mim, não olhes / que eu não sou o teu amor / eu não sou como a figueira / que dá fruto sem flor – e estes versos, que ela cantava com alegria meneando as ancas, excitavam cada fibra da fêmea de que a minha meninice era já projeto. 
Creio não ter havido ninguém na infância que me deslumbrasse tanto como a Maria Emília. Eu queria tudo o que ela tinha e tal qual ela tinha, a textura apetecível do cabelo, uma saia curta e umas ancas dançantes, um quarto só para mim ao lado da cozinha para que os adultos não ouvissem os rumores da minha intimidade e um namorado aos domingos, que me desejasse com fervor, me beijasse com competência mas não me aborrecesse muito durante o resto da semana. A Maria Emília foi minha amiga, minha professora, meu modelo inteiro e honesto de mulher. É verdade que as minhas irmãs e a minha mãe eram abençoadas em beleza e inteligência, mas o que tinham não havia sido conquistado com revolução ou sacrifício. E, de resto, quem me salvou das tardes de tédio e dessa espécie de abandono em que caem os caçulas quando a família está cativa de assuntos sérios e entretenimentos sofisticados, foi ela, a Maria Emília, que não era como a figueira.