30.7.20

Debruçado sobre o lago, Narciso estende já os beiços para a superfície da água, não sem antes me sondar com o movimento mal disfarçado da sua íris habituada a atrair borboletas. Quer ter a certeza de que tenho os olhos postos nele e julga até que à beira me deitei com o único propósito de o desejar. Inclina-se mais um pouco, arrasta o corpo no chão para evitar o desequilíbrio e a fatalidade, está seguro de que ao beijar-se despertará em mim vontade de fazer parte, como se a ideia do trio – ele, eu e ele – me pudesse excitar. Com efeito, cai-me o queixo, mas não de encanto. Repugna-me antes a sua postura de rafeiro subjugado, a vulnerabilidade exposta das nádegas, o sexo enterrado no húmus. Aviso que me vou aproximar, Narciso vaza o triunfo na forma de um riso breve, mas – oh, desastrada! – caio na água com estrondo e a figura dele desmembra-se na ondulação quase tão depressa como nos meus planos.

27.7.20

Antes de entrar na água, o mais velho respira fundo e pede-me que invista todos os meus pensamentos na sua proteção. É claro que sim, não tenho feito outra coisa, diz-me que outra coisa tenho feito nos últimos dezoito anos da minha vida? E se algum dia, meu rapaz voador, meu homenzinho, se algum dia por tua causa eu sofrer mais do que a conta e não me bastar o escudo, a carapaça, o talento para a acrobacia e até para o faz de conta, por mim nada farei, mas que te castiguem os deuses trazendo-te de volta ao mundo num corpo de mulher, fazendo-te um filho e obrigando o teu coração a passar os dias para trás e para diante sobre um fio de arame nas alturas.

24.7.20

Acocorado na soleira, na avenida mais movimentada do subúrbio, um velho macilento cata porcarias a um gato de cinza puro, aveludado. Meigo como por interesse os gatos são, este aquieta-se e fecha os olhos para o gozo pleno daqueles cuidados. Se fosse gente, teria de pagar por um mimo que se equiparasse, mas vir ao mundo como gato é outra sorte. Verdade que não é remunerado pelo serviço de apoio permanente à solidão dos humanos, pelos favores prestados para os distrair das ausências maiores, nem sequer pela condescendência com que se dá ao estrelato nas redes sociais e às judiarias de canalha habituada a reinar. Mas ao menos pode ser preguiçoso sem imposto e andar pelos telhados sem viatura própria e acasalar sem hipoteca nem comunhão de adquiridos. Já o velho, outra história. Provavelmente empregado, contribuinte, marido, cumpridor, consumidor, pagador, adepto, proprietário, e ainda assim ninguém que agora lhe cate a ele as porcarias com ternura.

23.7.20

Às vezes, porque um gatilho disparasse a propósito de qualquer coisa, ele dizia ocorreu-me aqui uma ideia e enquanto compunha mentalmente o que poderia vir a ser, sei lá, um verso, um parágrafo, um livro inteiro, a boca dele produzia um estalido contínuo, espécie de coaxada de anfíbio, e o queixo movimentava-se vagarosamente de um lado para o outro como as ancas de uma leoa. O mais provável era que dali viesse alguma magnificência, mas aquele parto repugnava. Fora isso – que com boa vontade até se ignorava – era um homem subserviente e ganancioso, não dava ponto sem nó nem beijo sem trinta dinheiros. Porém, tudo o que escrevia exalava uma ternura lúcida pelo mundo e a sua reinterpretação das debilidades humanas, em palavras, comovia e convidava. 
São muitas e compreensíveis as ilusões alimentadas acerca de quem escreve, num instante se cai no erro de imaginar na pessoa o encanto que há na coisa por ela escrita. Mas o criador nunca é tão belo como a criação, nem se lhe compara em méritos e virtudes. Só o Pedro Chagas Freitas é melhor do que a sua obra. Vi-o uma vez no ikea, passeando o filho bebé enquanto a mulher apalpava tapetes. Tinha um ar luminoso, sólido, genuinamente feliz e eu espantei-me tanto a olhar que ele me sorriu. Percebeu, talvez com alívio, que jamais lhe pediria um livro autografado. 

21.7.20

Antigamente, precisando eu de um catalisador do choro para desintoxicar de emoções inutilmente acumuladas, punha a correr o concerto de Keith Jarrett em Colónia. Certinho como poucas coisas na vida: aos sete minutos e treze segundos, nem mais nem menos, a torneira abria. Ah, daí para a frente chorava-se muito bem – lágrimas decididas, triunfantes, fatalistas, orgulhosas da sua causa e da sua vantagem – , mais ou menos até aos oito minutos e quarenta segundos. Depois, pelo resto do concerto ficava o espírito numa planura luminosa, desembaçada, pronta para a florescência. Hoje, sou muito menos refinada. Qualquer cebola fresca cortada pelo meio serve para o efeito e ninguém nota.

20.7.20

– Este jeitinho de perna é tal qual o meu filho.
Diz o senhor Pereira sobre Joaquim, que pela primeira vez caminha pelo próprio pé. O menino está cada vez mais boneco e cheio de graça, mas quem quer que nele tente ver sinais do pai continua a precisar ou de uma crença muito tola ou de detalhes que a olho nu são despercebidos. É tão saído à mãe que poderia ser obra exclusivamente sua, solitária e caprichosa. Tem dela o branco leitoso da pele, os olhos de verde aquático, tropical, os reflexos acobreados no cabelinho e até alguma altivez que faz com que pareça estar sempre a rir do que não é feito para tal e despreze aqueles que lhe dirigem macaquices. Não bastasse tudo isto, ainda recebeu o nome do avô materno. E o apelido Pereira foi acrescentado como se fosse um favor ou, enfim, algo a que era impossível fugir sem desencadear conflitos.
Joaquim podia até ser obra de outro homem, é certo, mas a imperatriz é uma rapariga inteligente dos pés à cabeça, que vantagem tiraria de inventar que o pai é este, um vai-se andandoquem sabe um diase calhar não vale a pena, medroso do mundo, incapaz de segurar uma rédea, com poiso preferido debaixo de saias de fêmea, sejam as da mãe ou de outra que lhe deixe a comida para aquecer? Se ao menos para sustento ou por herança ele fosse um pai conveniente, mas nem isso. Portanto, embora saibamos que a maternidade é um poder perigosíssimo, de enorme dimensão e longo alcance, cujas dádivas e manobras são as linhas com que se cose o mundo, certamente a imperatriz não faria uso dele para burlas ou diversões.
Em todo o caso, tenho para mim que o jeitinho de perna é apenas uma amorosa imaginação do senhor Pereira. Afinal, quantas farsas pode uma pessoa inventar, com quantas pode ser conivente durante dias, anos, décadas, só para evitar o sentimento de fracasso e salvar a sua trabalhosa dignidade?

17.7.20

De há uns tempos para cá, vivem num estranho sossego as três flores que sobraram das que Isabela deu ao mundo. Não se alteram em aspeto, cor ou textura, passando bem por uma dessas quinquilharias chinesas de plástico que mantêm as casas floridas em troca do afago de um espanador. Ora, é dos livros – e da vida – que as grandes tragédias são precedidas de uma tranquilidade assim, uma quase suspensão da vida e dos seus rumores, uma espécie de abafo surdo que anestesia e desarma os espíritos, assim os apanhando mais vulneráveis. Alguns dos que na vida buscam estabilidade sabem disso, ou mais tarde acabam por descobrir: sob tudo o que está demasiado quieto há sempre matéria viva a laborar, incandescências e forças em tão delicado equilíbrio que ao mínimo ajuste ou à mais ténue brisa, rasga-se um abismo. Por isso, e dada a minha triste experiência com orquídeas, sempre tomadas de exageros e com uma evidente falta de domínio das próprias emoções, tenho para mim que devo estar atenta. À partida, Isabela parece ter ganas de viver e mais agora que está ladeada por duas plantas de viril constituição, a quem dei a responsabilidade de filtrar a luz que em doses tremendas, às vezes dolorosas, entra cá em casa. Mas, ainda que as três flores estejam bem e que a perda das outras dez pareça não ter rasurado o amor-próprio de Isabela, vasculho amiúde as raízes e o ninho das folhas, junto ao caule, onde nas orquídeas acontece fermentar a podridão. É que nas dosagens sadias de vaidade é difícil acertar. E embora haja motivos para crer que quanto maior é a ostentação mais negros são os fantasmas, não é linear a validade do oposto.

14.7.20

Queria dar-te uma parte de mim que não tivesse sido usada, corrompida ou desbastada. Um pensamento novo, uma gaveta ainda por abrir, uma data do calendário que não esteja já reservada para uma lembrança, um naco da alma que seja liso. Amadureci. Há quem no meu lugar invente, troque, compre, revire ou acrescente, vista o fato de menina, ponha a máscara do inocente, faça a voz do sonhador, mas olha, eu não, eu tenho tudo gasto e nada por estrear. Devíamos preservar da infância qualquer coisa intacta, ter sempre um embrulho com laço de fita guardado para abrir pela primeira vez num instante que ainda está por vir ou para entregar nas mãos de quem só chega depois. 

9.7.20

A quem nunca aconteceu atirar ufanamente o cuspo ao ar e levar com ele de volta, em cheio na razão apregoada, e espantar-se então por haver tanta ironia nas leis do destino como rigor há nas da gravidade?

8.7.20

Pelo menos uma vez por semana o mais novo pede-me outro irmão ou, se escolher não for abuso, uma irmãzinha. As coisas não podem ser assim, explico, uma mulher sensata não se presta a dar fruto com a leviandade com que o fazem as flores, a quem bastam borboletas ou ventos favoráveis, nem como os animais, que cumprem os desígnios da espécie sem ponderar além do instante. Mas ao inocente pouco dizem as minhas razões e quanto maior o detalhe com que as exponho menor a importância que lhes dá. No seu espírito, ainda livre do sarilho de teses com que se fundamentam os passos da vida e a que no conjunto chamamos de maturidade, a boa intenção é suficiente para o valor de uma ideia e o sucesso de um projeto. Ignora ainda em quantas dúvidas e obstáculos podem tropeçar as boas intenções ao longo do seu nobre caminho e como tantas delas se esbardalham e se levantam com outra cara, novo nome e rumo oposto.

7.7.20

É difícil definir as causas e até os instantes que precipitam a avalancha. Basta que seja realmente suspensa a engrenagem por uns segundos. Não me refiro ao trânsito, às lojas, aos restaurantes, que esses já respiram moribundos, mas a tudo o que dá corpo à certeza de que, apesar do muito que se adia, o essencial se preserva: o fluxo intenso de trabalho, o amor com os miúdos, o banho diário, o ciclo menstrual, os asanas, as faturas, o lume brando na cozinha, o chocolate, o avanço nas páginas dos livros, as mensagens que chegam de longe, como parece que todas agora chegam. Quando tudo isso pára ou, não parando, é pensado como coisa concreta, avulsa, no seu devido lugar, o lugar do que consola mas não salva, como facto que é o que é e o que pode – e pode pouco – começo a fervilhar, prendo o cabelo, calço as sapatilhas e faço os caminhos desertos ao redor da casa, dou voltas ao quarteirão, desço e subo passeios. E para caminhar mais depressa invento que a minha fúria é contra a calçada e o asfalto, e que a saudade que tenho é do que vem depois da esquina, da rotunda, da papelaria, do pão quente, da praceta, da alameda, mais adiante, sempre mais adiante. Ou imagino que o perigo me persegue a passos largos sem me lembrar do que sei tão bem – que o perigo verdadeiro nunca vem atrás, espera-nos à frente, mudo e quedo, quantas vezes incrustado na geometria do mais plácido e belo de todos os horizontes.
Volto para a casa aceitando, como um ratinho de gaiola, que dei vinte giros na roda sem ir a lado algum. E então lamento por todos os que fazem o mesmo que eu e desperdiçam a energia a rugir como leões.

* Abril 2020

1.7.20

Quem nunca viu desfeito no pó das ruínas o áureo esplendor de um palácio e não conhece pelo menos uma história de amor interrompida por uma traição? A quem nunca pareceu de repente nova a rua onde sempre morou, quem não experimentou a certeza de que o dia raia sempre loiro e dócil depois de uma noite de inferno e quem nunca viu medrar, em felicidade e plenitude, alguém que à nascença tenha sido condenado a uma vida breve? Ah, o mundo dá muitas voltas, tem reveses e avanços, e pode ser nessa banalidade que o Marco do ginásio busca consolo. Quando recebe, em golpes frios e fundos, a indiferença da rapariga da papelaria, talvez lamba as feridas investindo o pensamento no dia em que ela há de sucumbir, porque ninguém resiste tanto tempo entrincheirado. A dor, que para ela tem sido cruz e conforto, já mais do que desbotou como os trapos sem uso que só por hábito e apego conservamos. Mais cedo ou mais tarde, dar-lhe-á a fome ou a sede, a pele ressentir-se-á da falta de um arrepio e talvez então procure outro corpo, outro ninho, outra vida. Nesse dia, lá estará ele.