28.11.20

Sempre que o mais velho se põe a ouvir pagode brasileiro, sei que a felicidade anda a rondá-lo de maneiras femininas e urgentes. O que mais quero é te dar um beijo / e o seu corpo acariciar / você bem sabe que eu te desejo / está escrito no meu olhar. O mais novo, que ainda não reconhece ao amor a benfazeja competência de embriagar a carne e vive descansado com versões platónicas, de casta doçura e pressa nenhuma, franze a testa à cantoria. Há uma idade em que as crianças ficam parecidas com velhos moralistas: a sensualidade desconforta-as, suspeitam dela como de uma conspiração. E quando nesta forma tosca e dura se vai convertendo a inocência, é porque está perto de caducar.

25.11.20

À porta do salão, a cabeleireira dá conta da sua existência com o espalhafato habitual. É a pausa para o cigarro e, nesta hora, não há quem passe e se livre de lhe ouvir um comentário, uma simpatia, uma festa, uma pergunta indiscreta, uma receita, um aviso ou, nos dias maus, até uma ou outra cobrança. Enfim, é humana, mas escusava de ser tão chata. Hoje escapo-lhe porque se entretém demais com o Marco do ginásio, estranho que um rapaz com tanta classe ainda não tenha ninguém. Por cortesia ele sorri, a timidez dá-lhe um ar garoto mas esforça-se por embarcar na conversa sem perder dignidade: estou à espera da pessoa certa. Na boca fumegante da cabeleireira rebenta uma dessas gargalhadas com que as pessoas maduras costumam ridicularizar a ternura e o desejo dos inocentes. A possante musculatura não salva o Marco da vergonha, mas logo a cabeleireira, a remediar o mal ou, quem sabe, a fazê-lo pior, pousa-lhe no ombro a mão com artísticas terminações em gel: vou-te dar um conselho, meu querido, e aprende hoje que eu posso estar morta amanhã. Oh, azar o meu, que já não ouço e dobro a esquina a pensar como admiro, mas nem por sombras invejo, estas pessoas como a cabeleireira, sempre muito vivas, todas envoltas em lantejoulas, agitando bandarilhas e chocalhos, dando sem cansaço à manivela da caixa de música, estourando foguetes por tudo e por nada. Gabo-lhes ainda a criatividade, a arte de impingirem carapau ao preço do robalo, chavões ao estilo de filosofia e cambalhotas de bobo como acrobacias de risco.

22.11.20

Desde Junho que me arranjo para ir ao cinema ou a qualquer sala de espetáculos como para uma festa. Se for jantar fora nem se fala. Creio que a solenidade é imposta pela sensação de que a qualquer momento esses prazeres podem ser-me vedados ou tornarem-se tão raros e difíceis que eu própria desista deles. Lembro-me de antigamente zombar daqueles que nas tardes de domingo vinham de longe trajados a rigor só para uma voltinha na marginal da cidade ou no shopping, eles de fato e gravata, elas de dourados e saltos muito altos, as crianças com as roupas da comunhão. E de me parecerem absurdos, excessivos, os vestidos e a maquilhagem que a minha avó usava quando ia votar. Envergonho-me de não ter compreendido que, em ambos os casos, de alguma forma o caminho para aquele benefício era ou tinha sido longo e custoso. Cerimónia era o mínimo que a ocasião merecia.

20.11.20

Para me distrair da longa espera, o mais novo conta, com os detalhes, as reviravoltas e o suspense dos bons narradores, de como Édipo precipitou o seu destino, julgando na verdade opor-se-lhe. Presto muita atenção, a fingir que desconheço a história. Sentadas a três metros bem medidos, uma mulher e a filha adolescente pousam os telemóveis para ouvir também e a outra mais ao lado, que tem um bebé ao colo, nem nota que o embala com a cadência da narrativa. Que riqueza de catraio, diz a mulher, e eu ponho os braços à volta dele, beijo-lhe os cabelos de oiro velho, a testa, o ninho doce que tem entre os olhos. É meu, não se vê que é igualzinho a mim? A adolescente franze a testa na hora em que Édipo mata o próprio pai, a mãe simula um arrepio. Como é possível que as voltas da vida levem a equívocos tamanhos? O mais novo explica tudo com notas de margem e rodapé e eu gosto de o ver consolado, certo de que pode aliviar-me qualquer angústia contando uma história, por mais gasta e trágica que seja. 

19.11.20

A dignidade da viúva é indestrutível. Ninguém pode apontar-lhe má intenção ou maledicência. Nunca foi vista a vender-se ou a dobrar-se, menos ainda a ser pisada. Não consta que tenha agredido, roubado ou ofendido. É imune à tentação do cochicho, evita as horas de ponta no pão quente, ri de si mesma quando o vento lhe desarruma a minissaia. Claro que pode haver quem veja defeito gravíssimo na sua excentricidade ou no gozo evidente que tem em olear a libido da vizinhança adormecida, mas isso, enfim, é a esmola que ela dá ao falatório de vão de escada, que com pouco sobrevive.
Por mais que sonhe ou imite, a mulher do senhor Pereira jamais poderá igualá-la. O alarde que faz das suas vantagens e virtudes é demasiado para fazer crer que tem uma consciência sólida. Porém, se entre ambas se travasse uma batalha pela simpatia do mundo, ganharia. A gente dá sempre a vitória àqueles que não inveja. Ao pobre, ao aleijão, ao enlutado, à mulher estúpida que deu todos os seus valores à troca por um casamento e acabou traída, cedemos de boa vontade o elogio e o pedestal sem nos roermos. E até dormimos melhor.

17.11.20

O meu vizinho comprou um SUV castanho dourado, igual ao da viúva, e estaciona-o com uma destreza performática ao lado da minha carroça. Antes de abrir a porta e sair olha-me daquela sua nova elevação, sabe-se lá com que sacrifício ou crédito atingida, e faz uma vénia ligeira. Reconheço-lhe a boa figura, embora note o quanto ensaia para se ajustar, receando descoser-se e deixar às escancaras um avesso indigno de conduzir tal máquina. Ah, um homem pode ser dono de defeitos vários, mais ou menos censurados, mais ou menos consentidos, mas ninguém lhe aponte desleixo na compostura ao volante do automóvel que merece.
Já em casa, a salvo do meu olhar desconfiado mas não dos meus ouvidos, tenta impor disciplina ao diabrete que concebeu mas sobre o qual não tem qualquer autoridade. Descontrolado e inútil, tão oposto à figura exibida na garagem! Vou contar até três para te calares. Um.... estou a avisar... dois... vou-te pôr esse rabo a arder... três! Mas o diabrete já sabe que o pai é cão que ladra sem morder e a ameaça dá-lhe ainda mais fôlego para o berreiro. A mulher, alertando para o óbvio: tu não vês que o teu filho nem sequer acredita em ti? 
Além do SUV castanho dourado, não há nada que o meu vizinho saiba conduzir.

14.11.20

Depois de mortas, as pessoas tornam-se demasiado perfeitas para algum dia terem sido reais. Ou não fossem a ausência e a distância as linhas com que se cosem as mais rebuscadas fantasias. 

11.11.20

Vou sabendo do que se conta e pouco mais: a imperatriz vai embora para apoiar a mãe, que murcha em solidão lá nas encorrilhas do monte. O seu colo desdobrar-se-á em dois. É hora de retribuir a vida que amorosamente lhe foi dada mas sem descurar a que ela própria pôs no mundo e por isso vai de armas e bagagens. A causa é nobre e foi certamente ponderada à custa de más noites, com prós e contras bem medidos nas voltas do lençol. Para impedir que o neto seja criado onde judas perdeu as botas, o senhor Pereira confia que o vírus jogará a seu favor. Esta pandemia ainda vai piorar muito e não pode desertar à toa quem mais falta faz nos hospitais daqui. Tantas regras e proibições para todos e iam autorizar uma enfermeira, numa hora destas, a transferir-se para a província? Era o que faltava! Se não há um pai ou um marido, ao menos o governo há de pôr freio nesta rapariga.

9.11.20

Fiz uma chávena de chocolate quente, espesso, temperado com gengibre e canela, e aninhei-me a ver mais um episódio de "Gambito de Dama", mas apesar do consolo na alma não houve conserto no mundo. É magnífico - e invejável - haver quem seja capaz de salvar o seu dia com um gole de chá, uma manta, um livro, um filme ou o mais que faça esquecer da parte e da culpa que temos no resto.

4.11.20

Pequena é a ambição dos pais que dizem aos seus filhos um dia vais dar-me razão. Em certos casos, chega a ser mau agoiro. 

3.11.20

Durante o confinamento, naquele março que vai tão longe, uma das coisas que mais me assustou foi ver quanta gente havia satisfeita com o silêncio do mundo e elaborava tratados românticos, doces, quase felizes, sobre a clausura. Cheguei a ouvir a alguém dizer que sonhara a vida toda com um momento assim. Tive mais medo destas pessoas, todas juntas, do que de cada reajustamento que o governo fazia às medidas aplicadas. Incapazes de ver para lá do seu conforto domiciliário, da sua despensa farta, do seu aqui e agora, mostraram como a voz do egoísmo, além de sentimentaloide, consegue ser despudorada. Redimiam-se picando o ponto na varandas para cantar loas ao pessoal dos hospitais ou apiedando-se dos velhinhos, que precisavam de tudo - e de tanto! - menos de piedade. 
Com o tempo fui notando que a generalidade dessas pessoas que faziam o elogio do isolamento enquanto brincavam ao neolítico amassando pão e congratulando-se com a descoberta de aromas florais e passarinhos, não tinham filhos ou os tinham já graúdos e dispersos. Por isso se marimbavam para o abalo do mais nobre e estrutural dos pilares de uma sociedade que se quer próspera: a educação. Também intuí que boa parte delas teria laços frouxos com a família, que os seus amigos seriam habitualmente ausentes ou mesmo inexistentes e talvez tirassem consolo de pensar que, por uns tempos, ao invés de uma sentença pesada, a solidão podia dar-lhes a grandeza de um sacrifício, o brio de um ato heroico. 
A certos iluminados ocorreu que houvesse uma mensagem do universo, essa entidade que os gurus da autoajuda têm vindo a descredibilizar. Eis a oportunidade de reverter o mal feito ao planeta e a nós mesmos, assim diziam muitos, travestidos de uma humildade forçada e verborreica. E até a mim, que sou simpatizante de Buda e tenho rituais diários de meditação e yoga, esta ideia soou a bugiganga espiritual. Mas serviu de pretexto para a reprodução desenfreada de sermões sobre como os outros se haviam portado muito mal ao preterir os afetos e a solidariedade em favor do consumo e do descarte. 
Pareciam pouco importados com a evidência de que a sociedade começava nesse instante a resvalar. Que a órbita do mundo seria redesenhada, sim, mas não no sentido do retorno àquilo a que chamavam as coisas essenciais sem noção de que falavam de privilégios e que ofendiam uma parte considerável do país e da humanidade: o livro lido com vagar, a paisagem silenciosa apreciada do terraço, a perceção das unidades de tempo, o aroma do café de saco. Na perspetiva estreita de quem tinha os empregos salvaguardados pelas circunstâncias ou pelo Estado e um bom seguro de saúde, eram estas, e outras similares, as coisas essenciais. 
Agora que novas restrições se anunciam, tudo isto me vem à memória e sei, tenho a certeza ou quero tê-la, de que quem viu desta forma romântica uma tragédia com tantas, tão amplas e tão duradouras sequelas, agora sabe mais, tem outra perspetiva, é capaz de mais empatia e de uma solidariedade mais genuína. Ou, se nada disto, ao menos mais pudor.