29.4.20

Ah, a minha avó gostava dos bons rapazes. Parece que estou a ouvi-la a dizer, agradada, quase derretida, gosto muito de fulano, parece ser tão bom rapaz. Referia-se sempre a homens moderados, incapazes de uma desobediência, respeitadores absolutos de todas as formas de soberania, ordeiros, nunca um murro na mesa, nunca uma porta batida, jamais uma verdade que desarrumasse muito. Os bons rapazes sabem onde devem estar, quando devem falar, como devem ser prestáveis. Gentis com as senhoras, de trato fácil com os cavalheiros, disponíveis no trabalho. Haverá mais conveniente do que isto? E se alguém, por um acaso improvável, os ouvir levantar a voz é para dizer, tomados de muita razão, eu não admito a sicrano que me faça tal coisa. Mas admitem, por não terem alternativa ou por ela custar demasiado para a bolsa empobrecida da sua coragem. 
Eram esses, os bons rapazes, os que garantiam um bom casamento, dizia a minha avó com o espírito cheio de temores e o coração embalado pelo romantismo simples das telenovelas.

28.4.20

Para fazer de mim uma boa católica, a minha avó contava-me sobre o trágico destino de todos os que provocaram a ira de deus ou puseram em causa o seu bom nome. Na maioria das vezes contava na cozinha, enquanto descascava as batatas para a sopa ou estalava a cebola no azeite. Mas em certos dias fazia-o com mais gravidade, sentada na arca grande do hall, uma arca de madeira escura, maciça, toda trabalhada, onde envelheciam serviços de jantar e outras relíquias. Aí, na penumbra, enquanto eu baloiçava os pezinhos a dois palmos do chão, ela desfiava um rol de desgraças verídicas cujo rumo teria sido oposto se houvesse um bocadinho mais de temor a Deus, respeito a Jesus Cristo e devoção Nossa Senhora de Fátima. A única de que me lembro, porém, é a do homem que menosprezou o poder divino durante uma violenta trovoada e cerrou o punho, apontando-o aos céus e rugindo uma ameaça: “Ele que atire cá pra baixo que eu devolvo lá pra cima”. 
Ao contar isto a minha avó franzia-se toda com a emoção, gostava de enfatizar as histórias, trazê-las ao presente, fazer-me sentir o medo, a mágoa, a raiva que a consumiam. Eu, deslumbrada com tamanha ousadia, e depois? Ah, depois, só de lembrar arrepiava. Veio do céu uma coisinha, disparada como bala em direção ao homem. Mas que coisinha? Era um brilhante assim deste tamanho, e definia-o com o polegar e o indicador, o rosto muito impressionado como se tudo estivesse ali outra vez. O brilhante surgira de forma tão rápida e era tal o seu fulgor, que os que testemunharam – e não foram poucos – ficaram assombrados. E vendo como certo que deus era autor e remetente do fenómeno, redobraram o temor que já lhe tinham. E depois? Não souberam mais, porque correram todos a abrigar-se e cada um acendeu velas e rezou o quanto pôde debaixo do seu telhado. Mas o que era, afinal? E com os seus lábios rugosos, sempre trespassados de lamentos e tensões, a minha avó respondia: fosse o que fosse, era o castigo merecido. 

27.4.20

Saio para me sentar num banco da alameda com um livro que não tenho intenção de ler no momento. Noutros tempos, a esta mesma hora, era certo que começando eu a descer a rua a mulher do senhor Pereira a subiria, na volta do pão quente, com uma roca a fumegar e meia dúzia de docinhos para consolo do espírito domingueiro e preguiçoso. Se viesse sozinha, teria os sentidos vivos como um animal de mato e avançaria com a segurança que lhe falta quando o marido a traz ao dependuro num braço. Curiosa sobre o meu livro, recuaria para focar e, de testa franzida, do que é que trata? para logo, sem surpresa para mim, desdenhar. Por ter os horizontes embaçados e o hábito de julgar pela capa, voltaria a insinuar que tenho tendência para ler obscenidades. E com o olhar à roda pelas periferias da visão, como num filme de terror, deixaria escapar um suspiro, um lamento, um desabafo entredentes sobre as inconveniências desta vida. Depois, como se lhe faltasse tempo para essas coisas menores que são a literatura e o amor carnal, causas de enguiços quotidianos e acidentes familiares perfeitamente evitáveis, usaria o argumento dos muitos afazeres domésticos para se despedir a correr. E então eu, receando que alguma reviravolta acontecesse no mundo ou por qualquer castigo, mistério ou desgraça não voltássemos a ver-nos tão cedo, segurar-lhe-ia no braço a dizer: não, sente-se aí e conversamos um bocadinho.

26.4.20

Na sociedade como na intimidade, somos mais e melhores a obedecer do que a empreender. Um casal pode passar anos em desamor, acobardado de uma atitude digna e honesta, mas se alguém manda que se enclausure por tempo indeterminado, acata com rigor, firmeza e até romantismo. O sentido do dever é uma virtude com partes iguais de tristeza e conveniência. 

23.4.20

Está tudo tão quieto que até à bravura deu sono. Não vibra mais por aí a energia do grande exército de salvação do mundo que nos pediram para ser. Afrouxou a bandeira do altruísmo e do sacrifício, desesperam agora os que mais firmes pareciam no isolamento. Era tudo magnânimo, intenso, apaixonante, enquanto se aplaudiam deuses e se culpavam bestas. O inimigo não era só um vírus, era um partido, um vizinho que não amparou a tosse com o braço, um velho que saiu para uma volta ao quarteirão por não ter jardim, varanda ou companhia e que ninguém soube compreender.
Agora que a areia vai assentando no fundo das águas, começará a transparecer o saldo real de tudo isto. E à tona vem a espuma de sempre. 

20.4.20

Tal como previ, culminou em desastre o arranjo que ontem tentei dar às minhas unhas. Tenho mãos miúdas, com dedos tão finos que mal seguram anéis, mas nem por isso talhadas para requisitos de minúcia e paciência. Em pequena, davam-me náuseas e dor de barriga as aulas de trabalhos manuais, disciplina que maculava o brio da minha pauta. Os meus colegas faziam delicadas peças de madeira, belíssimas tapeçarias de arraiolos e fada-do-lar, esculturas cerâmicas que as mamãs ostentavam no hall das suas casas e a mim, nunca mais me esqueço, um dia a professora cheia de pena, a ver se ainda era possível salvar-me: ó querida, só se tentares fazer um alguidarzinho de barro. Que miséria. 
Se a minha mãe ainda por cá estivesse e visse hoje o espetáculo destas unhas, a lembrar os primeiros ensaios com guache em pré-escola, havia de me dar consolo: pronto, não se pode ter jeito para tudo. Eu, mais apaziguada no seu colo, e para justificar as carradas de papel que sempre me disponibilizou e gastei sem moderação, responderia, como se isso de alguma coisa me redimisse: ao menos escrevo, não é? E ela, com a complacência do amor materno, que por natureza distorce e é habituado a fantasiar generosamente, sim, coisas muito lindas, coisas muito lindas.

18.4.20

Cansei-me das linhas de montagem de novidades sobre o coronavírus, dos diários da quarentena, da futurologia de trazer por casa e dos lugares-comuns em torno do regresso às coisas simples. Reduzi drasticamente a já escassa lista de blogs que lia e atravesso na diagonal os títulos das notícias. A vida através das janelas tecnológicas ou outras com que se remedeie o isolamento está enfadonha. A bondadezinha tornou-se um ensaio demasiado fácil e com figurino já encardido. A melancolia cheira a bolor. Os sermões moralistas, as análises e psicanálises de autoria diversa e ilegítima fazem rir nuns dias, noutros fazem bufar. As teses científicas tornaram-se produtos de mascar e deitar fora, com validade suspeita e de curto prazo. E a imprensa vai aproveitando para nos injetar veneno em doses reforçadas porque sabe que o medo abre todas as costuras da razão e permeabiliza os espíritos. 
Sou grata aos que, no meio disto tudo, conseguem ter a mente desperta e fora do carreiro. É com esses que aproveito para respirar fundo e fresco porque, como é fácil notar, também eu pouco digo que valha. 

14.4.20

Mais perdido está quem renega o passado do que quem não vislumbra um futuro. Porque, em todo o caso, não existe futuro algum que se possa vislumbrar. Planos e intenções definem o passo que damos, jamais revelarão o que vem depois da curva ou está atrás da montanha. Só a memória nos localiza absolutamente, nos dá o ponto a partir de onde sabemos que temos de avançar e que é o nosso chão, a nossa paisagem, a nossa perspetiva. 
Por isso, tão perigoso como viver preso ao passado é desejar esquecê-lo.

(esta manhã pasmei ao ouvir as previsões futuristas de Michio Kaku, o físico. Da possibilidade de fotografarmos os nossos sonhos ao acordar, até ao scanner de uso doméstico que com dez anos de antecedência nos avisará de um cancro, ele pode enganar-se em tudo se o mundo sofrer revés ou entretanto implodir. Facto, realidade, detalhe quase poético no meio disto tudo, era a bengala em que se apoiava quando subiu ao palco do auditório e em nenhum momento largou)

*post de 2015, que me pareceu justo repescar

13.4.20

Esta noite vi-me no caos da sala de espera de um hospital, mas por nada sequer parecido com o que agora agita o mundo. Fui fazer um exame de diagnóstico para confirmação de uma suspeita terrível, capaz de me reduzir a cadáver em meia dúzia de meses. Durante a espera imaginei, até quase me falharem os sentidos, o horror que viveria nas horas seguintes e do qual já previamente me informara: uma pinça de grandes dimensões seria introduzida pela minha boca de modo a arrancar-me pedaços de tecido da laringe a sangue frio. Para me tranquilizar não contaria senão com a delicadeza e a benevolência do médico responsável. Pouco antes do exame fui ao bar pedir qualquer coisa doce que me devolvesse os sentidos e a presença de espírito, porque nem a respirar conforme o ensinamento dos antigos me livrara da sensação de pânico. A senhora que servia torradas e galões ao balcão, de avental e mãos sapudas, oleosas e rosadas, negou-se a vender-me o que quer que fosse. Com o argumento de que era chegada a minha vez, despachou-me para dentro da sala de exames, trocou o avental por uma bata, calçou as luvas e tirou a pinça gigante da gaveta.
Acordei em sobressalto, precisamente à hora em que a angústia costuma sair da toca com as garras todas de fora para mostrar o negro pavor de existir aos espíritos insones. E foi difícil afugentar a ideia de que um perigo marinava em silêncio na minha garganta.

12.4.20

Ao soar a chegada do compasso pascal, alinhávamo-nos todos ao cimo das escadas. Pais, avós, tios, primos, irmãos, num perfeito equilíbrio de poderes, ideias e idades, convergindo no instante da suprema reverência ao beijar o crucificado. Para além da vontade sincera que eu tinha de fazer jus àquela causa divina de sacrifício, dor e abnegação – descartada mal entrei na adolescência – o que lembro com mais vivacidade é o cheiro a álcool etílico. Num tempo em que misérias, doenças e bizarrias do outro mundo ainda dominavam os enredos da província, o hálito desinfetado de Cristo era uma garantia. Permitia o beijo em total devoção, de olhos fechados, à confiança, pouco importando quantos outros antes haviam feito igual, que beiços ali tinham pousado, que vidas microscópicas embarcavam naquela cruz para aportar na próxima boca. Enfim, a verdadeira comunhão. Pese embora o carinho e o respeito com que lembro este ritual, senti algum alívio quando me vi livre dele, lá pelos finais da minha infância. Já a mãe da rapariga da papelaria, que continua sem acatar a ordem de confinamento absoluto, chora-se de este ano não poder ter essa graça, nem com a salvaguarda do álcool etílico. Atrás do balcão, encostada ao canto como num castigo, de boca e nariz enterrados na gola do casaco, esconjura o padre Gabriel por se submeter a esta embrulhada sem tugir nem mugir. A quem serve ele, afinal? Não é a deus? Acaso deus mandou-lhe que cancelasse alguma coisa? De facto, não. Não consta que deus tenha dado essa ou outra instrução qualquer. Aliás, onde está ele senão na resposta que nunca chega, no consolo que nunca basta, na casa onde nunca se consegue viver em paz? 

10.4.20

Notei que era falado, mas como não tenho televisão ignoro até que ponto e com que argumento Rodrigo Guedes de Carvalho a certa altura se tornou o guia espiritual dos portugueses. Diz que fez vibrar as cordas sensíveis dos corações lusos e que se dirigiu à nação com aquele paternalismo misto de amor e firmeza que se usa para educar no caminho certo e que até os filhos insurretos ou levianos costumam acatar se lhes faltar o chão e a mesada. Enfim, precisamos destas sentimentalidades como de pão para a boca sempre que estamos no espaço breve e branco do tudo ou nada, suspensos, de mãos atadas, à espera do socorro, com medo que nos falhe a confiança, sobrevenha de novo a pequenez e sejamos outra vez a pedra pela encosta abaixo, a estatelar-se no aquém que deus nos reservou. 

9.4.20

Da janela da cozinha vejo o ecoponto a tornar-se um lugar cada vez mais concorrido. Os automóveis encostam, abrem as malas e vão largando pilhas de excessos domésticos: caixas e caixotes, capas e pastas, brinquedos, sacos de roupa, mobiliário pequeno, abajures, molduras e uma série de quinquilharia que ao longe não distingo. É extraordinário o que há de sobra e inutilidade no topo dos armários, no fundo das gavetas, debaixo das camas, na sombra húmida das arrecadações. E tanta gente a realizar agora o que não faz falta, nem vale guardar, nem justifica o espaço que ocupa, o pó que acumula ou a energia que gasta. Eu tenho medo de qualquer coisa parecida: começar a notar, com clareza e sem ruído, aqueles cuja ausência afinal não cava no meu peito a saudade que eu previa. 

7.4.20

As mãos do mais velho escaparam à herança da triste falta de jeito com que nasceram as minhas. Tem-nas tão firmes a dominar bichos de grande porte como delicadas e elegantes na caligrafia, expressivas em danças e acordes, pacientes a desfazer os nós dos meus fios de bijuteria, ardilosas na manipulação da trajetória da bola. O que há de correr mal se lhes atribuir a responsabilidade de me cortar o cabelo, que já vai para lá do meio das costas?

6.4.20

Espera. Deixa-me acabar. Tu não me deixas falar, caramba! 
É o meu vizinho para a mulher, exasperado. Ninguém previu este inferno na assinatura do contrato. Era na saúde e na doença, sim, mas sem contar que havia de dar-se a pandemia e teriam de se bastar confinados aos metros quadrados que sonharam juntos, sem paliativos ou saídas de emergência. O amor cura tudo, hão de ter ouvido. Mas se adoece ele, de onde vem a cura ninguém revelou. Antes, ainda se consolavam a cada quinze dias, ela a gemer monocórdica, ele a resfolegar na escalada até se dar como morto com um risinho asténico, púbere. Agora, assim que adormecem a criatura, lavam a roupa suja mas como não se deixam falar e urge sempre a razão de um sobre a do outro, ao fim de algum tempo entregam ao silêncio a tarefa de desenlaçar o conflito. Fraca estratégia. Acabarão por tornar-se um casal vulgar, com flores na entrada da casa e mofo nas pregas dos lençóis. 

5.4.20

Enquanto esperamos pelo bolo mármore que cresce no forno, vamos auscultando a cadência da chuva e mastigamos, já doridos, a estrutura pastosa do tédio. Toda a casa está perfumada de chocolate e Lhasa, a desdeñosa, faz vibrar as suas mágoas de amor nas paredes da sala. Em dias como este, adiar todas as coisas da vida, renunciar à companhia dos outros, ficar longe dos entretenimentos e do bulício, não precisavam de ser uma ordem. Vê como a clausura e a melancolia se aparentam e como uma tão bem pode disfarçar a outra ou travestir-se dela ou por debaixo ocultar-se sem que ninguém desconfie.

2.4.20

Saio com o mais novo para a alameda, onde ele pode chutar a bola à vontade e queimar tudo o que tem comido. Sento-me num banco, mas nem abro o livro que trouxe. Fico a ver o quanto cresceu o meu menino de cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno, como amadurecem em harmonia e proporção as partes do corpo que tinha arredondadas e fofas, a barriguita, as mãos, as bochechas, como se afila o pescoço e ganham precisão os movimentos. Como, enfim, cada vez menos procura nos meus olhos o consentimento e o incentivo. O que nele invejo – pode invejar-se um filho sem levar castigo? – é a robustez do humor. Nada, sequer o golpe profundo da morte, a consciência do mal ou a sombra dos desastres, fez estremecer a visão generosa que tem do mundo. Corre pela alameda de braços abertos, cabeça levantada e olhos fechados, confiando que a paisagem se faz e refaz a cada passo seu para que nenhum mal lhe aconteça, nenhuma pedra o rasteire, nenhum muro se interponha, nenhum abismo se abra.

1.4.20

Posso competir com todas e para todas chego se perder o pudor e a humildade. Não vacilarei ao encostar a lâmina no pescoço esquálido da sentimental, cujas artérias choram aos soluços as sílabas do teu nome. Também serei rápida nos pulsos da melancólica de pantufas, poupando-lhe o encargo de te chantagear com o pretexto dos nervos fracos. A intelectual? Não me faças rir, que há mais no meu pensamento às sete da manhã de um domingo do que em tudo o que ela reteve dos livros com que encena a devoção ao conhecimento. A generosa, deixarei que se canse a alardear as suas bondades, esmolas e cuidadinhos e depois, só para ti, falarei do que ainda ninguém me ouviu contar. Nenhuma tem virtude que não possa ser superada ou defeito que eu não possa usar a meu favor. O que me parece impossível é competir com aquela que sonhas, pois essa é de substância maleável, podes tê-la de acordo com a necessidade dos dias, forte, doce, calada, despida, rebelde, e podes mandá-la embora e ela não terá orgulho bastante para negar o regresso quando lho pedires. Entra-te pela casa a qualquer hora atravessando paredes porque não tem corpo a não ser quando o desejas. Deita-se sobre ti sem ruído e conforme a tua vontade, encaixando-se na medida certa, no instante exato, em perfeitas condições de temperatura e humidade. Se pressentires que está perto de te dececionar, ou porque te cansas das suas graças ou porque te desgosta o género das suas calcinhas ou porque não te espantam mais as suas ideias, dás-lhe uma volta, um tempo, um retoque, sacodes a mão, desfazes e refazes o sonho. É por isso que, ainda que seja meu o nome e o rosto que lhe dás, sairei sempre derrotada da batalha contra ela.