28.1.22

O que mais assusta quando se apanha o vírus que anda nas bocas do mundo – e eu apanhei-o já duas vezes – é aquela pergunta que poucos conseguem calar e que disparam antes mesmo de indagarem sobre o nosso bem-estar: "e sabes quem te contagiou?". Que triste. A doença maior, a que verdadeiramente tem dado cabo de nós nos últimos dois anos, a que permite à nossa desumanidade continuar viva nos subterrâneos do civismo e da caridade, é essa: a fome de descobrir todos os dias alguém a quem chamar de irresponsável e ignorante, alguém a quem diminuir para supormos em nós a elevação que não temos. 

26.1.22

O Marco do ginásio parece finalmente ter embarcado nessa viagem simples, de planura amorosa, para a qual Gabi o tem desafiado nas horas vagas. São agora – diria a minha avó – como dois pombinhos a tomar café no pão quente, alheios ao frenesi da clientela e ao escarcéu da máquina de moagem, ensaiando beijos e segredinhos através das máscaras, jogando com os dedos entrelaçados. Mas nada disto eu vi ainda. A cabeleireira, de língua desocupada, é que põe e dispõe da história como se fosse a dela e lança na boca do povo os factos, os floreados, as conjeturas e tudo o mais que da alvoroçada inspiração dos salões costuma emanar. Comenta-se ainda que Gabi – que foi de férias e não pode confirmar ou desmentir – está a deixar de fumar pois sente-se indigna de um homem de físico tão bem amado, sem vícios nem deslizes, que trabalha com afinco para essa causa perdida que é a vida eterna. Ah, muito bem, sim senhora, a gente quando gosta dispõe-se a mudar pelo outro, são as vozes da sabedoria de trazer por casa a fazer o coro da aprovação, enquanto vai a escova e vem o secador. Mas a Dona Maria Isabel, a quem a urgência de opinar não abrevia os caminhos da razão, abana a cabeça e sorri. 
– Então se lhe faz bem deixar de fumar, não é bom? – pergunta-lhe a cabeleireira por saber já de cor a significação dos modos, tiques e trejeitos de cada uma das suas clientes.
– É, filha, se não reincidir mal a coisa arrefeça.
– Como assim, reincidir?
– Quero dizer se não voltar a fumar.
– E como assim, arrefecer?
– Ó filha, não sei o que ganhas em parecer menos esperta do que és. 
A cabeleireira meneia as ancas largas e preguiçosas de um lado para o outro varrendo as sobras dos cabelos cortados e vira a conversa do avesso:
– Gosto de ver aquela rapariga apaixonada, pronto! Ao menos não é como a outra, que amargou como uma velha e agora nenhum homem se chega a ela com medo de levar um banano nos queixos.
outra é a da papelaria. A outra é sempre aquela que ninguém sabe explicar e, por isso, nem se atreve nomear. Mas é enquanto a outra pendura na porta as manchetes do dia que o Marco do ginásio pasma como um imbecil defronte da papelaria, distraído das horas. Gabi há de voltar a fumar.

20.1.22

Alegro-me de saber que Tomás Nevinson já está em Portugal. Há quase um ano que o espero e já reservei para ele as horas mais intocáveis do meu dia. 

19.1.22

Gabo a doçura dos teus modos para afastar suspeitas sobre as minhas intenções. Às vezes, é preciso fazer de conta sem remorso. Não te posso confessar que o que me cativa, como um íman, é o que as outras desprezam: a austeridade, o cinismo, o humor a despropósito, as perguntas poucas e cautelosas, enfim, o abençoado rigor com que te despedes, exatamente antes de o êxtase se precipitar no tédio. Essas sobras difíceis, que noutras sejam causa de melindre e desilusão ou que ofendem os postulados do romantismo, a mim mantêm-me desperta. O romantismo não passa de uma falsificação ostensiva do enamoramento, produziu mais obras de arte do que relações felizes, é muito mais eficaz a rimar versos do que vontades.

15.1.22

Perguntam se não é dever de uma mãe alegrar os seus filhos ao invés de ser cúmplice das suas tristezas e eu penso apre, de quantas inquietações desnecessárias este blog é causador! Sucede que aos meus filhos cedo foi dado a provar o amargor de perdas irreparáveis e eu, pobre de mim, não só não pude protegê-los como fui o cruel mensageiro, minhas foram as palavras que rasgaram ao meio os seus corações de leite. Com que hipocrisia ou traje de circo havia eu de me vestir diante de quem já sabe que, embora digna de celebração, cheia de graças e maravilhas, a vida é um dá e tira, uma corda bamba, uma brecha a estalar debaixo dos nossos pés? Ah, sim, magníficos são esses pais que a toda a hora fabricam a felicidade das suas criaturas com estridências, colorações artificiais, festas e festinhas, bombos e teatros, teorias e estímulos, julgando assim enxotar-lhes toda a espécie de lutos, sombras e desilusões ou evitar que, por falta do que fazer, se viciem na cisma e na observação não condicionada do mundo. Tão pobrezinho deve ser o meu amor que nem sabe pôr disfarces à vida, dá-se com nudez e honestidade, sem fantasias nem manuais de apoio, e, por isso, às vezes, também em silêncio e desolação. Medíocre o resultado: filhos imperfeitos como pedras, fracos como gente, inquietos como vós. 

14.1.22

Ao relembrar certas ilusões da sua infância já abandonada, o mais novo – para sempre o meu bichinho da terra – diz-me que a tristeza de crescer é desmontar a farsa de quase tudo. Os embrulhos com laço de fita que decoram as lojas afinal são caixas ocas, as moedas de cêntimos que todos os dias lhe pingavam no comboio-mealheiro afinal valem para pouco, as cartas comoventes que em todos os natais recebeu afinal não eram escritas pelo punho de um ancião obeso na Lapónia. Estamos de acordo e prestamo-nos juntos ao elogio da inocência e ao exercício da melancolia comendo torradas de pão bijou em cafés vazios frente ao mar e andando de mãos dadas como dois desgraçadinhos que tivessem motivos de merecer a pena alheia ou a quem fosse dedicado o alarido agoirento das gaivotas. Quase cinematográfico este nosso lamento pelas desimportâncias do mundo.

12.1.22

Intrujões que vendem rima com rótulo de poesia 
são como os que chamam vintage a toda e qualquer velharia.

11.1.22

Deve ter havido um ponto, no curso pacato desta nossa existência habituada à democracia, em que, por descrença, desentendimento ou simples desleixo, perdemos a noção de que governar é um serviço e não um jogo. Só isso explica as ganas de vencidos e vencedores com que se comentam os debates dos candidatos às legislativas, a apreciação dos melhores ataques e contra-ataques, a avaliação do grau de espetacularidade da desavença e até o traje com que se apresentam à performance. No meio de tudo, nem nos damos conta que quem perde somos nós, porque, pelo visto, nenhum esclarecimento, nenhuma sensatez, nenhuma honestidade nos é devida. Tampouco a reclamamos, porque isso tornaria o debate demasiado sério, cansativo, incapaz de competir com a fulgurante e atrativa decadência dos reality shows. E para esta diversão inconsequente compramos nós bilhete a cada quatro anos. 

10.1.22

Esta florzinha salvou-me. Diz-me a rapariga da papelaria enquanto disciplina o cabelo de Alice sob o jugo de dois criteriosos totós de elástico cor-de-rosa. Fá-lo com aquele brio que só as mães e a menina nem se queixa, cantarola sozinha melodias da sua imaginação e explora o interior do nariz, deixando a cabeça oscilar para um lado e para o outro, sem resistir aos puxões. Tem crescido muito. Está com os olhos cada vez mais profundos, redondos e espertos e, para alívio da rapariga da papelaria, passou-lhe o vício de negar, contrariar, desdizer e atirar-se para o chão como mártir desse mundo de duvidosas intenções e maus exemplos que é o dos adultos. Fiteira, é uma fiteirinha, a menina! Mas desengane-se esta mãe amorosa se julga que ao seu coração será autorizado repouso. Acabaram as birras por coisa nenhuma, é certo, mas chegaram os porquês e disso se queixa já a avó, desabafando sobre o atrevimento da menina, que tem uma língua sem freio e já lhe causou grandes embaraços diante de vizinhas e clientes. Esta menina tem de ser educada. Coitada de Alice. Reprimem-lhe as ganas de entender o mesmo mundo em que a obrigam a comportar-se. Perguntar é um ato de coragem, de valor moral muito superior ao da inteligência da resposta. Para onde evoluiriam certos pais se não fossem as perguntas dos seus filhos? Mas, enfim, Alicita – diz a avó – terá de habituar-se a estar caladinha. Não é, minha riqueza? E ela, com a cabeça de um lado para o outro, diz que sim só por dizer. Não se habituará. O hábito nunca trouxe nada de bom, ainda que nos tenham impingido o seu valor como base da decência e da estabilidade. Dane-se a estabilidade e junto com ela a decência. Quem precisa de uma ou de outra quando as linhas da vida são curvas, precipitadas e obscenas?

7.1.22

Tarde e a más horas aprendo que não é sensato revelar o que escrevemos a um homem cujo coração estremeça a nosso favor. Seguirá o rasto de todas as entrelinhas até se encontrar. Cheio de conceitos e suposições sobre os propósitos da escrita feminina, desconsidera a ideia de nela haver verbo que não seja vazadouro de mágoas e desejos. As mulheres escrevem mais com o coração. Julgará então que a ele se refere todo o género masculino da ortografia e da sintaxe. Esquece que masculino é também o pai e o filho, o estranho, o passageiro, o acaso e o consumo, masculino é ainda o espelho e o sexo, texto e o retrato, o deus, o anjo e o diabo, o real, o imaginário o esquecimento. 

6.1.22

A pandemia lembra-nos, a todo o instante e por todos os lados, a lógica primordial da existência: sobreviver. Como gente desesperada, vulnerável. O que temos é fundamentalmente uma vida de superfície, sem tempo nem espírito para irmos mais fundo e sermos melhores. Temas de conversa afunilados, relógios acelerados, prioridades reorganizadas. A urgência é encarreirar em filas, levar o quanto antes mais uma dose de salvação, enfiar sondas pelas narinas para conquistar privilégios, reclamar com humildade permissão para circular, trabalhar, viajar, visitar, pedir e dar satisfações sobre com quem, como e a que distância estivemos, temer o colapso, a falência, a doença, os outros, e viver nesse cuidado, como a criança que não se mexe para que não a culpem pela tareia que levará de qualquer modo, esperando a palavra do especialista, as conclusões da reunião, o resumo do parecer, esperando que tudo isto passe e nessa espera avançam os dias, as semanas, os solstícios, as doses, as vagas, as variantes, os governos, avança tudo menos nós. O pensamento definha, as ideias murcham, as crenças desatinadas e sem critério conquistam-nos. Ah, como era afinal de pechisbeque a nossa melancolia de dois-mil-e-antes-disto-tudo, que belos números de solidariedade interpretávamos, que conhecimentos inúteis e distorcidos, embora magníficos, impingimos aos nossos filhos! No fundo, resiliência – que elejo como a palavra mais imbecil, obscena e insultuosa do século –  sempre foi a nossa maior virtude, a nossa única virtude. Com os corpos assim a boiar à tona desta surrealidade, haveremos de ir aonde a força da correnteza nos levar. 

(feliz e desinteressada do que acabei de pensar, abandono a farmácia com mais um passe para a liberdade, válido para um jantar, um concerto e uma sessão de cinema, atenção: expira em quarenta e oito horas)