1.10.24

Sento-me diante do olhar compassivo de Buda disposta a imitar a sua dignidade, faço as orações, deponho os desejos e as armas. Pouco a pouco, entrego também as culpas, as lembranças, os fantasmas, os futuros possíveis, as palavras que devia calar e ainda agora proferi mais as que, por ter engolido, me envenenaram. Ao fim de algumas horas, começo a esquecer-me do sabor do chocolate, da água quente na pele, do cheiro a mosto e livros velhos, da textura e do vagar da tua língua, da atração pelo espelho, do gozo da vitória sobre os adversários. O meu corpo baloiça suavemente, o coração bate lento nas pontas dos dedos, cheira a canela e a sândalo, as velas cintilam no altar, há bailarico e foguetes num lugarejo vizinho mas já só ouço os rumores do jejum e o ranger das madeiras antigas. Estou quase lá, onde nenhuma guerra me convoca, nenhuma causa me seduz, o rosto do inimigo é branco, todos os laços se desfazem, não sou mais filha, irmã, mãe e amante, a minha palavra não vale um cêntimo, estou livre de servir e ser servida, quase lá. Quase. No fundo da sala, bate com estrondo uma porta por desleixo, depois uma risadinha adolescente e várias outras por contágio. Sacudido, o meu coração retoma o pulso original, o sangue levanta fervura e recupero toda a minha humanidade, as minhas raivas, os meus delírios, as minhas ganas, a minha visão turva, apaixonada, do real. Que alívio. 
Sempre quase lá, mas nunca mais do que quase.

27.9.24

Notemos essas grupetas que gostam de elaborar, online e offline, acerca do flagelo que é a falta de hábitos de leitura. Uns do meio literário e educativo, outros somente opinadores a quem o ócio desencaminha mais do que o mundo precisa, mas todos certamente superiores, pois dominam a receita para a elevação intelectual de um povo. Supõem-se cultos porque leem muitos livros, ignorando que a cultura não é um ato de consumo mas antes – e sobretudo – de entendimento e transformação. Notemos como são sobranceiros e autoritários, logo aí deixando em evidência que é parco e seco o fruto que dá tudo o quanto em si dizem cultivar. Limitados ao convívio e à comunicação uns com os outros, ora em corredores de academia ora em eventos de acesso condicionado, que margem lhes sobra para evoluir em visão e raciocínio? Tomam pela verdade o que supõem mas supõem generalizando, porque as generalizações são a tara de quem vive fechado em gabinetes, agarrado a manuais, trocando impressões com os pares. Esses, quando vêm defender, sem margem à dúvida, que o remédio para a gente gostar de ler é mandar ler – aplicando com rigor essa coisa desapaixonada a que se chama o hábito da leitura – não vos lembram aqueles pais provincianos muito certos de que impor ao filho quase infante a frequência de bordéis era o quanto bastava para os educar na paixão pelo sexo oposto?

24.9.24

 – Gosto dele como sei lá o quê. Acho que morria se ele me deixasse agora... 
É Gabi. Os olhos encharcadinhos de emoção e deslumbre, são quase dois anos de namoro para celebrar com o Marco do ginásio, nem sabe ela como chegaram até aqui sem percalços ou desavenças (mas sei eu). Comove-se também a cabeleireira, uma revoada de penas e lembranças murcha-lhe a expressão, ressoa nela todo o medo que atormenta a jovem. Bate na madeira, filha, bate na madeira e dá cá um abracinho, cúmplices na fraqueza, como nunca as vi no trabalho. 
Assentam as versões mais perigosas do romantismo nesta ideia de que o outro nos salvará. Em tempos que já lá vão, salvar-nos-ia de dragões, malfeitores, ruína financeira, má fama e até guerras. Hoje, salva-nos de levarmos sozinhos às costas o absurdo de existir. Ser romântico é uma enorme irresponsabilidade, quando não uma vergonhosa preguiça. 

17.9.24

Porém, não apareceste. Apareceu antes o meu pai, o que é natural, já que estamos às portas do outono, seria o tempo de irmos a Castro Daire comer arroz de feijão com salpicão, o tempo de ele interpretar a ondulação animal das minhas ancas e os meus excessos de apetite, tu não estarás grávida? e eu, tão leviana, menosprezando o quanto pode essa raríssima aliança entre ciência e intuição que nele era quotidiana, original e generosa: que disparate, nem pensar. Apareceu antes o meu pai, dizia eu. E fomos juntos de automóvel, ele conduziu com a serenidade real, era mesmo ele e não outro como acontece em certos sonhos que reconfiguram o mundo sensível, era exatamente sua a face, o olhar sóbrio, a constância, a lucidez, o longo silêncio que não usava para se ausentar mas para se fazer mais atento – quem fala muito distrai-se do fundamental. Súbito, parou. Desligou o motor, notou os próprios pés, disse sei qual é a embraiagem, o travão e o acelerador, mas não consigo usá-los, estou a ter um enfarte. Trocámos de lugar, sentei-me ao volante e antes de rodar à chave despertei, obviamente, sem qualquer vestígio dele, nem rosto, nem cheiro, nem gesto, nem sopro, embora me tenha levantado da cama com ele sobrevivo, vitorioso, em cada uma das minhas células.

13.9.24

Deito-me esta noite mais cedo na esperança de te encontrar num dos meus sonhos. Mas, olha, não é propriamente o sonho que eu quero, pois desse não guardarei depois mais do que lembrança. Quero os primeiros instantes do despertar, aquela vaga consciência de existir, a realidade dúbia e tão porosa, porque é aí que o meu cérebro crê na possibilidade de ali estares e ao corpo – que maravilha! – não resta senão concordar e obedecer. 

11.9.24

Os homens na praceta já não ficam extasiados à passagem da viúva e o que antes comentavam por desejo, comentam agora com despeito. Mas que mal lhes fez ela? Nenhum, além de andar na companhia do homem de bigode com o charme desusado dos anos oitenta e autorizar que a sua mão erre no dorso dela, devagar desde o sopé das nádegas até à secreta concavidade da nuca e de novo abaixo e outra vez acima. Não é um gesto particularmente original, mas nem todos têm ciência e tato para uma primorosa execução, e assim, à vista dos homens na praceta, é um crime. Ao deixar-se amar em público, a viúva matou a imaginação deles e a imaginação – sabe qualquer um – é o mais poderoso entre todos os afrodisíacos. 

9.9.24

À porta da papelaria, Alicita sacode o marasmo domingueiro da vizinhança com muito alarido e uma torrente de lágrimas. Ouço dizer que, às primeiras tentativas de rodar na bicicleta sem apoios, a menina deu um trambolhão espetacular e das mazelas resultantes constam um braço escoriado, um joelho aberto e duas mãozitas num estado de dar pena. A avó acorre com muita aflição e um frasquinho de desinfetante, mas a mãe, que é mãe e por isso se basta, cai de joelhos e lambe-lhe todas as fontes de sangue vivo como um animal. De passagem, admiro a cena e comovo-me. Que fáceis são as dores dos filhos pequenos! Sobre elas temos sabedoria, autoridade e remédio pronto. Difícil é a hora de acudir às feridas dos filhos crescidos, cujos corpos ultrapassam a medida do nosso regaço e, por terem perdido a inocência, não acham mais consolo em cantigas rimadas, falsas promessas ou medalhas de coragem.

4.9.24

Gosto de ouvir as estagiárias na pausa para o café. Não estranho o ritmo frenético nem o facto de se darem muito ao relato e nada à reflexão. São inocentes disso. Vieram ao mundo nesta época em que opinar já não é atributo de consciência, dever de cidadania ou estímulo entre bons companheiros, mas um tacho remunerado ao minuto ou ao caráter. Ensinaram-lhes que o que basta é contar, mas que difícil se tornou fazê-lo sem mostrar! Se peço que me expliquem, espera, e recorrem a uma fotografia ou a um vídeo, porque as palavras rareiam e dão trabalho. Começam todas as frases por imagina, embora depois, que pena, haja pouco para imaginar. Imagina é o novo é assim, uma muleta introdutória de significância nenhuma, uma bagatela sintática, um adorno para preguiçosos. Vamos simplificar, dizem de tudo – e simplificando extinguem maravilhas, enigmas, tensão, dúvida. Com elas, o mundo ganhou competência e agilidade, mas perdeu mistério e matizes.
Apesar de tudo isto, como eu invejo a sua insensata urgência no porvir, os absurdos ideológicos formulados a partir de indignaçõezinhas miúdas, benignas e passageiras, o olhar bovino sobre as profundezas da realidade. Invejo o quanto sabem de mundos e linguagens que desconheço, invejo o sonho cuja impossibilidade ignoram e por isso perseguem, invejo a magnífica, tentadora visão da curva em que ainda irão despistar-se, as primeiras vezes de tudo o que têm por fazer. Invejo, ainda e sobretudo – pobre de mim –, que com uma carteira nova ou um par de sapatos tão bem remedeiem todas as dores da alma.

2.9.24

Esta noite, Rosarinho pariu quatro filhos de uma assentada, com a ajuda dos pais, da avó, do marido e dos cunhados, do irmão caçula, das primas de Viseu e de mais uma data de familiares madeirenses a quem só se costuma ver a fronha em casamentos e funerais. Talvez eu já tenha visto isso em algum filme: uma mulher a dar à luz e uma aldeia inteira à sua volta. Ofereciam uns as mãos para que ela as mordesse nos picos de dor, outros contribuíam marcando o compasso da respiração e muitos apenas olhavam pelo simples facto de ser necessário assistir ao milagre para fixar na retina a autoridade e o pulso firme da natureza, que joga com as forças humanas até às bordas da insânia e, quantas vezes, para lá delas. Graças a uma porta entreaberta por descuido, também vi tudo. Rosarinho com o corpo escancarado, o sexo rasgado e a vida por um fio, a revirar os olhos, a expulsar os filhos, de seios completamente descobertos, já a postos para servir. Não avancei para ajudar. Assisti àquela hora tortuosa a lembrar-me de como ela conseguiu realizar o único sonho de que se alimentou toda a sua adolescência: casar com um dos melhores partidos do Norte. Reconheçamos o mérito. Era engraçada, loirinha, com dois sobrenomes bastante apresentáveis aos quais fez questão de acrescentar uma criteriosa seleção dos do marido e, embora tivesse frequentado os colégios que lideram os rankings, chegou à idade adulta a julgar que se fecha um x-ato empurrando a lâmina com o dedo, sem saber quantos centímetros tem um metro e na mais absoluta ignorância sobre o que se obtém ao somar os quadrados dos catetos. Mentirosa e má profissional, salvou o mundo quando decidiu dedicar-se apenas ao ponto de cruz e a workshops de confeção de macarons. Dizia que filhos, só havia de os ter por cesariana para não escangalhar o pipi, e que quem amamenta são as vacas. Vê-la ali tão exposta, na sua condição primordial, contorcida, subjugada, foi uma surpresa. Perto das quatro da manhã, os urros dela acordaram-me. Apalpei o breu, acendi o candeeiro, um alívio ver o quarto silencioso, limpo e só para mim. O descaramento com que esta gente me entra nos sonhos ao cabo de mais de um par de décadas!

30.8.24

Era capaz de me casar com o homem cínico só para pertencer à terra dele. Amaria prontamente esse outro rio, pelo qual posso dar o meu à troca, cansada que estou do escarcéu, das navegações em cortejo, dos arraiais flutuantes. Com a mesma vaidade com que apregoo as maravilhas do meu berço, seria capaz de dizer alto lá, que sou da raia, sou bilingue e melancólica, tenho uma casa virada a montante que os céus fustigam sem trégua com chuva miúda, noite e dia, dia e noite, em todas as estações. Faria votos a estas muralhas e esta ruína, ao verde tão verde, um verde mais que verde, um verde matizado e labiríntico que o punho dos homens não arrancou pela raiz nem dobrou para matar as suas fomes, à luz que doura as águas ao entardecer como se as premiasse pela espera, com suavidade e justiça, sem ostentação, sem esbanjamento, num brevíssimo estio. Posso ser de qualquer Norte e tanto me faz de qual sou, valem igual o norte invicto, o norte sangrado nos socalcos, o norte brumoso e húmido que range nos ossos dos velhos, o norte infernal e renegado que manda para lá do Marão. Todos se entendem e acolhem, tal qual os vizinhos de porta sempre aberta que dão de comer aos filhos uns dos outros e lhes limpam o nariz com o mesmo lenço de avental, por saberem que não é fácil a vida de ninguém. 
O homem cínico acha graça. Digo que quero ficar, tenho os olhos carregadinhos de paisagem, duas nascentes cujo frémito seguro com disciplina, e ele sorri, terno, como sorriria à criança pequenina que só se encanta por certas coisas do mundo porque ainda ignora as suas faces mais duras.

24.8.24

No velho regime de itinerância a que o calendário obriga, nossa senhora corre vilas e aldeias atendendo a todas as causas, às vezes em dois lugares distintos ao mesmo tempo, coisa que das divindades se espera e das mulheres se exige, nada faltando assim aos homens de boa vontade e das vontades em geral. É do socorro, dos remédios, da agonia, das angústias, do bom despacho, da boa viagem, do amparo, da graça, das dores, da esperança, do desterro, e quantas mais palavras ilustrem as cargas pesadas da humanidade e as recompensas que por elas hão de vir. Assim me espantou que, na fase de shoot out, a rapariga que rezava de joelhos na areia tenha acabado por ser, precisamente, a única a falhar o remate. Por sua causa, o sonho de toda a equipa ficou ali enterrado. Oficializada a derrota no mostrador eletrónico, ela atirou-se ao chão e chorou até o campo se ter esvaziado de cumprimentos, aplausos e disparos fotográficos. Parece impossível: pleno agosto e não sobrou, entre tantas nossas senhoras, uma que largasse a festa para acudir às suas orações.

18.8.24

Vivo mal com agosto. Nasci pelo solstício de inverno, mais de vinte e cinco graus e já me falham as pernas e o discernimento, arrasto-me pela casa, derreto na cama, hiberno aos domingos, temo a implosão do sol. Mantenho-me viva à custa de água e imaginação. Fecho os olhos e invento um arrepio, penso no regresso das chuvas, nas brisas de outono, no vento gelado de dezembro, num aguaceiro abundante que me apanhe desprevenida na rua, e a inevitabilidade de tudo isso consola-me. Com a lucidez que resta ainda me socorro da memória da noite de hoje, de estar contigo na Arca d' Água, deitada num desses bancos de jardim abençoados em todas horas do dia pela sombra das árvores - onde as mães se sentam a dar de comer aos filhos e os velhos pousam para chorar o tempo que já não é deles - e de acordar de repente, sem susto nem razão, com agosto todo colado ao corpo, tanto suor, tanta saudade.

14.8.24

Não fosse criatura minha, o rapaz voador havia de ser o meu maior amigo. Em quase tudo as nossas vidas se opõem  ele é amante de lonjura e precipícios, viciado em espanto, novidade e movimento, a mim agrada-me a terra firme, estar viva já tem sido ousadia bastante e se às vezes vou mais longe do que creio ser razoável é porque me leva ele pela mão. Não fosse criatura minha, eu procurá-lo-ia sempre que a coragem me faltasse, socorrer-me-ia da sua palavra lúcida e profunda, aprenderia com ele a interpretar pessoas, a enxotar fantasmas, a encantar crianças e animais, tomaria a amplidão do seu peito para repouso de todos os meus cansaços.
E o menino de cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno? Ah, por esse eu havia de apaixonar-me perdidamente, escreveria versos anónimos nas páginas do seu caderno, beberia, sôfrega e de queixo caído, cada uma das suas teses e considerações, encobrindo a minha ignorância para não merecer o seu desdém. Embora sabendo que manobra o verbo com intenção de seduzir, ainda assim me deixaria levar. Usaria brilhos e dourados, pintaria os lábios, seria feminina e lunar. Investiria toda a imaginação no momento em que também a mim ele pedisse o número de telefone no cimo da Torre Eiffel, como o vi fazer a outra. 
Porém, não me calhou ser, na vida deles, assim suave e passageira. Calhou-me ser mãe e não outra coisa qualquer. Calhou-me o útero, a semente, a casa, o amor primordial, o posto de vigia, o dever do mestre, a dor e o poder da expulsão. 

13.8.24

 – Já leu o livro dos velhos no lar?
Vítima da emboscada da mulher do senhor Pereira, sobressalto-me à entrada do pão quente. Ela bate os tacões como cascos de cavalo para se anunciar, ávida de atenção, e eu compreendo-a por saber o quanto investe no traje, na maquilhagem e, pela época, também no bronzeado. Notam-se-lhe na pele os brilhos gordurosos e obscenos de agosto, é acabada de chegar de oito dias inteiros de torra ao sol, lambendo-se com óleos de coco e cenoura, estirada em resorts de onde nunca sai por repulsa às misérias e aos maus cheiros das latitudes tropicais. Numa mão tem um saco de moletes, na outra quatro anéis e um gesto afetado. Sorri de cima, maternal, piedosa, como se, na verdade, pouco ou nada lhe importasse a resposta que darei.
– Qual livro dos velhos no lar? 
É fácil saber do que fala a mulher do senhor Pereira, já que ela só sabe falar do que todos os outros falam. Mas, por razões que resumo ao puro sadismo (cada um diverte-se como quer em agosto), não me apetece facilitar-lhe a vida, nem ela precisa. Nada desbasta o orgulho aparente desta mulher e por maior que seja a estocada, jamais descerá do pedestal para olhar o outro com empatia, o seu prazer está em apiedar-se do sofrimento alheio e é a pena que sustém a sua verticalidade. Triste e grave é o que acontece aos outros, coitadinhosDe resto, a traição do marido, as afrontas da imperatriz, o caráter mole do caçula, o divórcio da filha mais nova, as esquerdices da mais velha, perante tudo isso se apresenta superior, ostentando sempre o fato de lantejoulas e as bandarilhas com que o toureiro cria no público a ilusão de que o massacre é, afinal, uma festa magnífica. Não é que seja mestre na arte da superação, mas é-o, sem dúvida, na ciência do disfarce. 
– Este.
Da carteira tira o livro que ganhou o consenso e a comoção de todos, sem exceções, reservas ou ressalvas. Depois, torna a guardá-lo rapidamente como se me tivesse mostrado uma arma. 
– E então, presta?
Dizem as verdades de trazer por casa que não se discutem os gostos e eu discordo, pois se houver território onde o debate desafia e enriquece é por certo o da subjetividade. O livro de que a senhora fala, ofereceram-mo há mais de ano e meio, peguei-lhe com curiosidade e abandonei-o a meio, vencida pelo tédio. Acredito que seja um livro de boas intenções, nobre pelo propósito e pela dedicação, mas é frígido, sem rasgo, não convence. Vamos, claro, aceitar a hipótese de os meus lapsos de inteligência e sensibilidade terem condicionado a leitura e podem até perguntar-me quem sou eu para desdizer a maioria, essa entidade sapiente e provedora, dona dos tempos de antena e das colunas de opinião, que se nutre de si mesma e segue à frente para abrir caminho ao pensamento e poupar a gente a esforços demasiados e desnecessários. Sou ninguém. Mas como os gostos se discutem, olhe – se quer um livro sobre velhos que apodrecem em lares, sobre a memória e o corredor da morte, que comove e remexe no pavor de existir sem pieguices, entre com coragem e coração firme no Em nome da terra, do Vergílio Ferreira. Isto só penso, porque na hora em que vou falar, a cobardia amordaça-me e o senhor Pereira, vindo não sei de onde:
– São uma delícia estas conversas das senhoras. Uma delícia.
Mal ele abre a boca e já ela se lhe pendura no braço, gesto de fidelidade conjugal ou reflexo condicionado. O senhor Pereira pergunta-me se está tudo bem, como estão os rapazes, quando vou de férias, porque estou tão branca, tão magra, tão séria. Abala sem esperar respostas e eu fico a admirá-los, as costas muito hirtas, os sorrisos tão abertos, os cumprimentos largos e festivos. Como está, minha senhora? Continuação, senhor doutor. 
Todos envelhecemos, mas alguns, como se lhes fosse prescrita, à nascença, toda a má sorte do mundo, vergam muito antes de a idade o justificar, enquanto outros, porque lhe são concedidos privilégios de ordem genética ou modos mágicos de viver a vida, preservam até muito tarde o brilho e a saúde. Os Pereira envelhecem com teimosia, impõem-se à vida com propriedade e exuberância como se ainda tivessem créditos e recusam-se a desistir antes que as contas estejam todas saldadas. Tiremos-lhes o chapéu porque, apesar de tudo, triunfam.

11.7.24

Há que dar a mão à palmatória e algum mérito às improbabilidades: ao cabo de tanto tempo de espera e esperança, excedendo-se no crédito que deu a histórias e desculpas, olhando a vida com o hábito da generosidade, a rapariga da papelaria ganhou para si o homem maduro. "Ganhar" é modo de dizer, mais concretamente o modo de as velhas dizerem, por serem de uma época em que, ao invés de fluir com os acasos que a natureza determina, a vida queria-se firme e blindada, com amarra e sedimento. Desculpemo-las. A História dos factos explica sempre a dos sentimentos e em tempos que foram de escassez e de juízos morais severos para com as mulheres, ter uma casa, um emprego, um companheiro, enfim, ter, era a maior de todas as vitórias. Quem ganha é dono e quem é dono pode repousar nesse estado sólido, quantas vezes mesmo empedernido, a que por tique eufemístico se chama "estabilidade". 
Adiante. 
Gabi, a manicura sonsa, tem versão menos feliz dos factos. Recordemos – porque há muito tempo não se dão aqui satisfações sobre coisa alguma e é sabido que quem não aparece esquece –  que a rapariga da papelaria se enamorou de um homem casado, maduro nas palavras dela, e que confiou que ele fosse capaz de desatar o nó cego da conjugalidade para ficar com ela. Contra todas as expectativas – ou pelo menos contra a que impera neste blog – ele assim o fez e demonstrou que afinal não era mais um vulgar exemplar da cobardia doméstica, encerrando o casamento que há muito arrefecera na cama e engolia em silêncio as mágoas e as refeições.
Mas Gabi, dizia eu, conta e reconta a história no salão sem resistir a desconsiderar o acontecimento. No vaivém da lima, faz notar o facto de que, embora lhe tenha sido favorável o desfecho da novela, a rapariga da papelaria jamais passou de um recurso de salvação, um fundo de reserva, uma dessas almofadinhas sempre disponíveis onde se encostam aqueles a cuja espinha falta verticalidade. 
– Ele não é por amor que fica com ela, ele é só porque o casamento correu mal e ela estava ali à mão. 
Sim, toda a gente conhece, de cor ou de experiência, casos desses para quem os amores não são fonte de riqueza mas conveniência quotidiana. Se estão à partida condenados ou, pelo contrário, tão habilitados como os outros ao grande prémio da felicidade conjugal, é dúvida que deixo à análise dos especialistas. Importa-me antes lembrar que o desdém de Gabi não é senão a purulência da própria ferida. Porque, afinal, onde estava ela na hora em que o Marco do ginásio precisou de ser salvo dos azares amorosos? À mão. Não foi ela também segunda escolha, recurso? Mas a manicura sonsa é incapaz de notar o quanto revela de nós mesmos a maledicência que aos outros dedicamos. E assim vai mostrando o que vale, muito embora às clientes do salão seja de muita serventia o que a respeito dos outros se comenta, por ser entretenimento garantido a romper o tédio dos dias. 
Cara Gabi, Gabriela no registo, manicura de profissão, maldizente de ocupação: tenha cuidado. Ninguém pode fazer-se de outro e esconder por muito tempo quem, na realidade, é. Nos malabarismos de caráter, ou acabam por cair as bolas ou acabam a cansar-se os braços. 

27.6.24

E a menina, diz o senhor Pereira, caminhando ao meu encontro com o riso garoto de quem se dispõe a pedinchar favores, a menina é que me podia dar uma ajudinha aqui com umas rimas novas. Até ao fim do mês há concurso de quadras populares no jornal diário e se não for pelos prémios, que até são generosos, que seja pela distração. Disseram-me que a menina tem queda para poeta. Valha-me Deus, senhor Pereira, a leviandade com que se atribuem aos outros culpas e cargas tão pesadas. É da sua cabeça ou da má-língua da vizinhança a ideia de que eu algum dia pudesse ser poeta? Os poetas fumam ou bebem muito, sofrem dos nervos e de infâncias doridas, atraem amores malditos, têm raiva à própria sombra. Moram no limiar da loucura, está certo que todos moramos, mas a eles o mundo perdoa mau génio, narcisismo, sujidade, caprichos, cabelos revoltos e mutilações, como aos filhos prediletos. Então eu, de pés na terra, casa arrumada, cadastro limpo, mente oleada, pontual no compromisso, rigorosa no verbo, com as emoções dobradas sob o jugo de uma mente disciplinada, nem uma gota de romantismo me tempera o sangue, sequer subversiva sou, tenho fantasmas mas são amigáveis e quando me visitam encontram-me de porta fechada e sono pesado, então eu, senhor Pereira, tão ordenada, silábica e suave, a ser alguma coisa serei o verso, jamais, jamais, jamais aquela que verseja.

19.4.24

A cidade perdeu o juízo, está de tripas reviradas, chagas abertas e artérias entupidas. Entre o nascer do sol e muito além do seu poente todas as horas são difíceis. Nos semáforos da avenida, a miséria pica o ponto: sem-abrigo, malabaristas imundos, velhos exaustos que, ao invés de ajudarem, as instituições obrigam a pedinchar. Na baixa, manifestam-se com palavras de ordem as insuficiências de tudo: teto, direitos, dinheiro, esperança, respeito, saúde. De madrugada, à porta das discotecas, os adolescentes fazem correr sangue na calçada por uma ou duas palavras mal ditas, um olhar provocador, um lugar na fila. 
Os turistas ignoram este avesso, caminham rente às feridas sem as ver ou, vendo-as, coletam-nas como elementos de identidade e cultura, parte da história que hão de contar no regresso a casa. Aceitam as horas de espera para entrar na que se apregoa a livraria mais bonita do mundo debaixo deste nosso sol viscoso, suado, apreciam a quinquilharia de cortiça produzida em larga escala para o faz de conta do artesanato e da genuinidade, enternecem-se com a velhota desdentada que se presta à fotografia só a ver se o dia melhora e com o estendal de rua onde coram os lençóis vincados da insónia e do cansaço. Em fuga acelerada da própria desgraça, dos grilhões do quotidiano e do medo de morrer antes de tudo ter visto, coitados, mordem todos os iscos. De passagem não se tomam as dores dos lugares, à luz da novidade tudo é adorável, benigno, curioso. E, de resto, para a ruína inventar-se-ão sempre eufemismos, seja a ruína das cidades, seja a ruína dos povos. 

12.4.24

Quase ao mesmo tempo, o rapaz voador e o menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno enredaram-se na trama do enamoramento. E se antes a minha casa já era um lugar de música e cantoria, agora os ritmos são ainda mais sentidos, há neles a perigosa vibração desse estado de fascínio que dispõe a confiar e consentir. Vejo graça em tudo isto. São as paixões que dão fôlego à juventude e só por inveja ou remorso ocorre aos adultos desdenhar. Mas, sendo mãe, assusta-me que se abeirem de precipícios. Como eu gostaria de proteger a sua inocência, rever os caracóis de anjo do mais novo, o modo gracioso de ele tropeçar nas consoantes difíceis, o mais velho horas a fio escondido nas copas das árvores como o barão trepador, venham lanchar, eu chamava da janela e eles voltavam sujos, suados, exaustos de levantar muralhas, combater exércitos de malfeitores, despistar o ferrão dos bichos cujo labor, por vício de curiosidade, perturbavam. Dessa infância de liberdade e fantasia sobrava, ao anoitecer, a água castanha do banho, enquanto límpidos, transparentes, os olhos deles agradeciam.
E agora, não bastassem os corpos feitos e viris, as inquietações, o susto e a pressa de futuros desconhecidos, eis o amor romântico, essa arma de escangalhar corações incautos e que não sabemos se ao longo dos séculos faz correr mais lágrimas ou tinta. Podem dizer dele maravilhas, levantar-lhe estátuas, versejá-lo, invocar o seu nome em vão, acreditar que governa o mundo, pô-lo na boca de cristo, a pés juntos jurar que é por ele que se mata e morre, embrulhá-lo com laço de fita, mas só raras vezes ele se livra de acabar aos domingos na fila do pão, diminuto e resignado, e de se finar amarrado à hipoteca da casa. 
Que ao menos no seu curso inicial, que é tumultuoso, sôfrego e urgente, o amor romântico restaure as cores que o mundo vai perdendo. Porque, sobre todos os imprevistos que alvoroçam o espírito humano, este leva a vantagem do sonho e da ilusão de não estamos sós. Que o prazer justifique o quanto de inocência é dado à troca. E que, embora sendo a primeira, não seja a última vez que assim sucede.

26.1.24

Na boca do homem cínico sobrevivem, cheias de senso, palavras que a preguiça e as importações arredaram das escolas, dos diálogos quotidianos e até da literatura recente. Porém, ele não as escolhe complexas ou pretensiosas, porque usar o verbo como instrumento de vaidade é próprio dos idiotas e oposto ao seu feitio. Escolhe-as por critério de rigor, para ser fiel, para me dar a visão do que eu não presenciei e só posso imaginar: a sua infância, a sua façanha, o seu ato falhado, as atribulações do seu dia-a-dia. Tudo o que ele diz tem o corpo cuidado, digno e superior da língua portuguesa, da língua que venero e da qual sou aprendiza deslumbrada, da língua que opera e edifica as minhas coisas miúdas. O homem cínico manobra-a com sabedoria e generosidade e é com ela que me deita, é com ela que me despe. 

25.1.24

Em pequena, gostava de ler o dicionário freudiano de interpretação dos sonhos, livro que apareceu entre a vasta e eclética biblioteca do meu avô materno. Por muito tempo eu e as minhas irmãs tivemos o hábito de consultá-lo quotidianamente, na esperança de decifrar os enredos que, dormindo, fabricávamos. O livro satisfez as curiosidades apressadas e momentâneas, mas não a sede de entendimento. O mundo dos sonhos permanece para mim um mistério e nada do que diga a gente das ciências da psique – das exatas às ocultas – me contenta. Na semana passada, por exemplo, enamorei-me de um homem quadrado e dediquei horas a lixar as suas arestas para que ele pudesse amar-me sem me magoar. Ontem, perdi no aeroporto um cachorrinho que uma amiga me confiara dentro de um saco de compras do continente. Hoje, comecei a trabalhar como estafeta numa fábrica de pantufas. Em certas noites cometi crimes sórdidos, com gozo e violência, sem arrependimento, para fazer cumprir uma justiça em que cegamente acreditei. Mas, no meio de tudo, o que é realmente curioso é que, tantos anos depois, a minha subconsciência continue a inventar alternativas à tua morte. Entras pela casa como se fosse território do teu domínio e justificas a ausência com razões que a cada noite mudam: uma reunião de trabalho que se complicou, uma volta ao mundo decidida num repente, outra mulher, outra família e, às vezes, de caráter transfigurado, muito azedo, insolente, dizes que é que foi? que queres? deixa-te de merdas, fui só ali num instante. Parece impossível que, noite após noite, continues a repetir a estocada. E que, para te manter vivo, eu seja capaz de inventar tudo, até o que o meu coração jamais suportaria.    

23.1.24

Vivo mal-entendida com o mundo e não tenho interesse absolutamente nenhum em resolver isso. Às vezes adoço, satisfaço-me com desimportâncias como a ordem da casa, as boas palavras desses com quem convivemos de raspão, o sol nascente no quarto, um bolo no forno, um chazinho, enfim, a doçura quotidiana que adormece e cria poesia pálida. Cedo apenas porque não quero que os meus filhos me vejam como as árvores que racham por se oporem demais à ventania. Mas esse bem-estar de pele e circunstância dura pouco, logo recaio no vício da descrença, que, admito, também tem os seus cómodos, facilidades e conveniências. 
Então, quando o senhor Pereira vem direito a mim com ânsias de gaiato, a cantarolar Gente que é lá da Régua / não se espera que dê trégua, e me saúda com a palmadinha na face e o olhar daqueles pais que só condescendem por terem também o poder de castigar, penso que talvez seja ingrato, da minha parte, retribuir as pequenas graçolas da vida com relutância e má cara, desconfiar tanto dos tempos de paz e dos esbanjadores de felicidade, recusar-me a falar nessa língua distraída que conjuga sempre os verbos no modo simples do tempo bem passado. Esforço um sorriso que encubra a irritação, digo feliz ano novo, deixo que aperte as minhas entre as suas mãos e, por razão que ignoro e não vale perguntar, ele comove-se. Acho que o senhor Pereira gosta de mim. Mas de um gostar cansado, rendido, que não escolhe mas acata, que é cúmplice no descontentamento, embora oposto na sua causa.

16.1.24

De quem seria o maior susto, a mais terrível experiência: do adulto que retrocedesse às horas violentas do próprio nascimento ou da criança que, ao vir ao mundo, antevisse toda a carga que o futuro lhe reserva?

23.12.23

Caríssimo deus, que entregaste o teu filho aos Homens de carne e osso para que o celebrem aos empurrões nos shoppings, fartos de canela e açúcar, vermelhos do tinto e dos rancores mal disfarçados à mesa da consoada, não te sou devota, nunca fui, embora os teus mistérios me intriguem e ensine as minhas crias a refletirem sobre a possibilidade de seres. Caríssimo deus, nunca te pedi nada, ou pedi? Nas vésperas de exames, na hora do parto, nos cortejos fúnebres, avancei sozinha com o meu medo e a força das minhas pernas, jamais te implorei favores ou te culpei pelos desastres. Podes até estar aí, talvez atendas aos jogadores da bola no instante do penálti e a outras causas igualmente meritórias e urgentes, mas eu tenho o meu orgulho, prefiro as coisas à minha maneira e, de resto, depois do descanso ao sétimo dia nunca mais trabalhaste com brio e ambição. Portanto, não espero que me dês mais do que o que tenho, nem venho pedir-te de volta os meus mortos, a minha juventude, a minha fé na humanidade, ou sequer exigir sobre isso ajustes de contas. Mas ao menos, caríssimo deus, se é mesmo tua a vontade que os Homens pedem que se faça por nela confiarem ainda e apesar de tudo, não arranques dos meus braços mais ninguém. Aqueles que por amor considero, acolho e sigo, a ti servem de pouco, são fracos e defeituosos, não suportariam asas de anjo, mas a mim salvam-me, todos os dias, do pecado mortal da resignação.

19.12.23

Aplausos para o ciúme, um inventor de primeira categoria. Apreciem a sua espetacularidade, deslumbrem-se com os efeitos imaginários que às coisas reais ele acrescenta, notem o poder dos seus fantasmas e a agilidade dos seus malabarismos narrativos. Vejam em quantas palavras consegue ele transformar um silêncio inofensivo e distraído. Com que passe de mágica muda os figurinos, troca as vestes do anjo pelas do demónio, mata a bela, mostra a fera. Espécie de embrião da loucura que, felizmente, na maioria dos casos, a sensatez faz abortar a tempo, o ciúme deixa ainda assim marca azeda, estrago, pena. Irmão do despeito e do desdém, perigosamente aparentado com a raiva, é preciso dominá-lo como às bestas e colocar-lhe mordaça para evitar que mais tarde chore, arrependido do próprio desbocamento. Diga-o o senhor Pereira que, ao ver passar a viúva de mão dada ao homem de bigode, sussurrou para o filho, trocando com ele esses olhares que certificam o atávico entendimento de machos:
– Esta mulher, pela maneira como se pendura no sujeito, do que tinha falta sabemos nós. 
O idiota, que se por educação é fraco podia ao menos por vontade ser robusto, reagiu com a neutralidade habitual. Talvez lhe escapem os verdadeiros motivos da baixeza do pai, ignora certamente que ele cobiça e bajula a viúva desde o primeiro dia, que o perfume dela é o bastante para encorpar a sua virilidade e que lhe toca a pretexto de gestos simples de cumprimento, como se fosse descuido. Mas porque os atos das mulheres não cessam de molestar o espírito dos homens ignorantes, o idiota pôs-se também a pensar na imperatriz e nas razões que a levaram a preteri-lo. Ou assim presumo eu porque, ao cabo de algum tempo, já a viúva tinha dobrado a esquina, desabafou ao pai:
– Elas andam todas doidas ou é impressão minha?

14.12.23

Quando o meu corpo adoece, que ingrato! A vida inteira o amei sem preconceito ou reserva, dei-lhe do bom e do melhor, protegi-o das ofensas, da corrupção e da cobiça dos fracos. Amei o seu cheiro lácteo no princípio de tudo. Amei os joelhos e cotovelos rasurados nas horas vagas da infância, ferida sobre ferida, sem dar tempo à cicatriz. Amei-o desconsolado, febril, vulnerável, com odores de poeira, vento, caramelos, suor, entrincheirado no colo materno, a temer as demasias do mundo. Amei depois, na dúvida, os brotos nuns seios pequeninos a anunciar o tempo difícil de ser mulher e a revelação do sangue vivo entre as pernas, numa tarde de maio. Nessa floração dorida, amei-o com ansiedade e fulgor, escrevendo poemas vagos sobre coisas imitadas aos adultos, que encaixavam, como peças à medida, em toda a minha novidade sentimental. Amei-o orgulhosa, de repente, ao notar que nele despertava uma planta carnívora. E, tal como os pais por amor fazem aos filhos, disciplinei-o e protegi-o de si mesmo, das suas urgências, da desmesura de certos sonhos que de noite eram asas e de dia insensatez.
Aprendi mais tarde a amar o meu corpo também através do corpo amante de outros, entre o temor e a veneração, como se ama os deuses – pelo mistério, pelo absoluto, pela dádiva. E amei-o depois de dar dois estranhos à luz, aturdido, fragmentado e devoluto como gente de fortuna que num só golpe caísse em desgraça. Amei a sua morosa reconstrução, os escombros, os despojos de sangue, a cicatriz no sexo, a servidão total às crias que dele faziam ninho e alimento, ignorantes da violência que lhe impunham. Tão estranho a si mesmo, este corpo mereceu ainda assim o meu amor. Amei-o piedosamente quando foi mortalha de outro e em dobro o amei quando depois tombou coitado numa cama enorme, na mais longa de todas as noites. A respeito do meu corpo jamais disse más palavras ou as permiti. Fascinam-me as suas assimetrias, os seus humores, o seu microscópico labor, a sua autoridade, a biografia dos meus pais e dos pais dos meus pais escrita nele. Amo-o sobre todos os outros, mais do que o dos meus filhos, acima do de qualquer homem. E, sem sentimento de culpa, debruço-me nele como Narciso, não porque o julgue superiormente belo, mas porque o quero superiormente digno. 

12.12.23

Na hora do almoço, ouço-as gabar a habilidade dos maridos para grelhados, vinhos e café, por tradição os pelouros ocupados pelos homens que ajudam lá em casa. Não sei se tenho mais pena delas, por de tão pouco se orgulharem, ou deles, assim publicamente diminuídos. Desgostar-me-ia muito se um dia alguém assim falasse dos meus filhos, como macaquinhos de zoológico que, ao cabo de décadas de esforço, treino e desmemoriação de maus hábitos, ganhassem palminhas, medalha ao peito e o olho gordo das outras senhoras casadas. Para efeitos de declaração pública de amor, conto que lhes exaltem o conhecimento, a lealdade, a ternura, a coragem moral. Não quero que os valorizem tanto por tão pouco que eles deem.

27.11.23

Ao cabo de tanto tempo a marear na sua pele, desinteressada do destino e do dia seguinte, feliz com o acordo mútuo de economia sentimental, aliviada de o ver partir depois do êxtase e de uma história, dei comigo a desejar de coração o homem cínico e pensei: estou perdida. Tenho a certeza, foi a ternura dele que me rasteirou. 

14.11.23

É só na hora da confissão que a mentira se torna uma indecência. Antes disso, é inconsequente e amoral. Acredito nisso quando ouço o sermão de Lígia, a mais velha das manas Pereira, ao sair de casa com a sua menina exemplar:
– Se me voltas a mentir, tiro-te tudo, ouviste? Tiro-te tudo! 
Vê-me e sorri muito, a compor-se da vergonha de ter sido apanhada nos bastidores da sua representação quotidiana, sem o retoque da maquilhagem, o figurino da elegância e da sensatez, o devido ensaio de boas maneiras. Que terá feito a menina que justifique ameaça de pena tão pesada? Escondeu uma má nota, gastou o dinheiro das fotocópias no quiosque das gomas, passou a tarde na ramboia a pretexto de um trabalho de grupo? Com a adolescência a rebentar em todos os poros da face, a menina revira os olhos e desacelera, ganha distância da mãe. Sabe que tudo teria continuado na paz dos anjos, sem mortos, feridos ou percalços, se a verdade, seja qual for, não tivesse vazado. Por acaso cometeu algum crime, fez mal a alguém? 
– Não, mas não te admito que me mintas. Não te admito.
E perante a desproporção daquela justiça materna, em que mais pesa o orgulho do que o ensinamento, a menina anuncia: para a próxima mentirá com mais cautela e inteligência. 
– Veremos, minha menina, veremos.
Não. Obviamente, não verá. 

9.11.23

A professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada divaga no pão quente sobre a turbulência política e aproveita para fazer saber que está de baixa. Os nervos sucumbiram, já não há medicação que dê sentido a esta vida e o médico deixou claro que só voltará a pôr os pés numa sala de aula quando recuperar a força anímica. Mas enquanto puder fugirá desse dia como o diabo da cruz, nem que tenha de falsificar lágrimas e reinventar as suas dores. Cada hora com aqueles demónios é um calvário, falta-lhes tudo, intelecto, interesse, boas maneiras, safa-se um ou outro de espírito mais vivo e curioso mas até esses, com o tempo, acabam arrastados pela maioria. Por culpa da escola, todas as noites – todas, todas, não garante porque é preciso descontar as que não dorme – cai na trama de pesadelos que prefere nem contar e quando acorda dói-lhe tudo, as pernas desobedecem, a garganta fecha-se, a visão turva-se, os dedos das mãos incham.
– Então e os dias com o rapaz em Barcelona, princesa?
Uma canseira, ele a querer mostrar todas as magnificências da capital catalã e à professora só apetecia o aconchego de um sofá, o entendimento de um livro de poesia, uma água fresca com limão, a ternura fácil dos seus gatos pretos. 
– Dá Deus nozes, princesa...
Quais nozes, qual quê, aquilo parece uma feira popular, carreiros de gente, empurrões, escarcéu, toda a gente olha para tudo e ninguém vê nada, não há silêncio que favoreça a contemplação, o mundo muito desarrumado pelas ruas e aos solavancos nos monumentos, tantas raças, línguas e cores, um compra e vende em cada esquina, talvez exagere mas foi assim que as coisas lhe pareceram. E o rapaz sempre a puxar por ela. Custa aos filhos compreender que as mães se esgotam nos primeiros vinte anos de vida deles, que depois disso a folia e a aventura já não seduzem? Que interesse há em andar para lá e para cá, ir para dizer que foi, ver para dizer que viu? Chegando ao fim, voltando a casa, que diferença fez? 
– Então, princesa? Alargou horizontes, sei lá...
E que diferença fez, repete, que diferença fez? Pegue-se num livro de poesia, vá, num bom livro de poesia. Não tem mais e melhor efeito? A funcionária do pão quente perde argumento e palavra. De poesia não pode falar, nunca lhe deu para ler e mal teria tempo para isso, mas se houvesse dinheiro, era certinho que viajava todos os continentes.
– Tem de se dar mais à felicidade, princesa.
As coisas não são assim simples, mulher. Fala da felicidade como se fosse um vento que se apanha ou um traje de lantejoulas que se veste de manhã e dispõe logo a bailar com o mundo o dia inteiro. Que aberração! É direito de qualquer um ser infeliz em paz e sossego, ter um canto da casa mal iluminado e com pó de muitos anos ou uma dor de estimação para alimentar todos os dias. Até de uma princesa. 

8.11.23

– À mulher de Penedono, faz-lhe falta ter um dono.
O senhor Pereira acabou de descobrir o poder das rimas e contenta-se de ter arranjado maneira de dizer as suas verdades provocando mais riso do que indignação. Diz que agora lhes chegam as ideias de repente, às vezes enquanto lê o jornal ou toma banho, e pede à mulher que as vá anotando num caderninho, até porque está a pensar usá-las para animar a família na consoada. Não bastassem à senhora os deveres da governação doméstica, acrescem agora os de secretariar o poeta recém-nascido e coletar os seus delírios.
– Com todo o respeito e não se ofenda a menina, mas esta de Penedono também dá para si, não dá?
– Por acaso, não. Já lhe disse que a minha terra é a norte, na margem direita do Douro.
O senhor Pereira estranha que me rale mais o lapso geográfico do que a estocada machista, mas creio que estando além das minhas possibilidades desenferrujar toda a estrutura de valores em que, sem brecha de humildade, o septuagenário assenta, posso ao menos fazer donativos à sua pobrezinha cultura geral. 
– Não me leve a mal, mas a menina é um bocado picuinhas. Aquilo é tudo mais ou menos por ali.
Insiste em fazer do país interior uma amálgama, um ali ou além ou acolá que aos seus olhos diminutos não diverge no atraso social, cultural e mental. Transmontanos, beirões, alentejanos, vai dar tudo no mesmo, safam-se talvez os minhotos porque favorecidos pelos ventos do dinamismo galego ou a menina não se lembra de quando íamos todos às compras a Vigo, que cá não havia nada de jeito? 
Todos não, senhor Pereira. Com o carimbo da minha boa memória certifico que em romarias do consumo nunca os meus pais embarcaram e muito menos arrastaram a infância dos filhos para tais devoções. Noto que se abespinha com a ideia de que eu possa estar a reduzi-lo a um vulgar deslumbrado, mas, enfim, às vezes os dias não correm de feição e se os houve em que eu saí diminuída pelas suas imbecilidades, outros tem de haver em que o troco seja dado.
Porém, este homem para derrotas não foi talhado, muito menos perante uma mulher, pois então é muito mais do que a razão que está em jogo – é a dignidade. E o trunfo, como habitualmente, bate-o na mesa mesmo antes de me virar costas.
– Olhe, fica já aqui o compromisso. Na semana que vem, a menina vai ter uma rima só para si.

31.10.23

Homem, não enterres a tua dignidade levando a julgamento público a mente de uma mulher, seja em graçola de tasco, em desabafo de amigos ou em música premiada. Quando acusas o pensamento feminino de incerto, complexo, indecifrável, confessas, sem dares por ela, que és pouco em entendimento e em razão. Se, por outro lado, supões que fazes justiça alguma apresentando-o similar ao das heroínas, das deusas e de outras almas superiores, ou és filho protegido ou poeta fracassado.
Sobre o que te é trabalhoso amar desculpa-te com a tua insuficiência, não inventes o nosso excesso.

24.10.23

Lá vão elas, com os seios caídos de tanta fartura e fadiga, os ventres servis, os tornozelos grossos de chutar os dias avante, o frenético bamboleio das coxas para atender às crias e todo um alfabeto sentimental nos vincos da testa. Andam para lá e para cá, sobem e descem na bancada, perguntam aos seus homens se depois é para passar na churrasqueira ou se lhes basta o jantar requentado da véspera, de caminho amaldiçoam os árbitros, desejam o pão que o diabo amassou aos adversários, gritam aos filhos que são os maiores, que são invencíveis, que basta acreditarem e tudo, absolutamente tudo alcançam. Que embusteiras, estas mães! Ouvindo-as, convenço-me de que a mentira é a condição do amor. Varrem do caminho todas as reais impossibilidades, afastam os pedregulhos do desalento e da injustiça, fingem que só da vontade depende o êxito da marcha, para que os seus amados filhos avancem seguros de conquistar o mundo. Afinal, o amor pode não ser só o sacrifício da paz e da razão, mas também o da verdade. 

21.10.23

Não podemos todos falar apenas de sangue e morte, ter assento na bancada dos jurados, ser porta-estandartes, carrascos, domadores de feras, cuspidores de fogo, não podemos todos assinar por baixo das moções, das petições e das veementes condenações. Não podemos todos atiçar as raivas, reclamar aos deuses, acudir às causas, maldizer os destroços das consequências. Não podemos todos avançar para a frente de combate e atirar pedras, tinta e provocações. Não podemos todos ter tanta pressa em apresentar publicamente o certificado de moralidade e justiça. Ter a primeira e a última palavra. Entre nós, tem de sobrar quem confie e espere, quem cuide das coisas primordiais, quem regue os campos semeados, quem saiba interpretar os sonhos. Tem de haver quem continue a beijar-se sob um guarda-chuva transparente pintalgado de vermelho como se fosse ainda o primeiro dia da criação do mundo. 

20.10.23

Sob a ampla abóbada de um guarda-chuva transparente de pintas rubras, a viúva e o homem de bigode com o charme desusado dos anos oitenta colhem as delícias da sua intimidade amorosa. Enquanto ela fala, ele abre caminho por entre a cabeleira negra, explora-lhe pescoço, sussurra-lhe ao ouvido, depois morde-a e cala-a atirando-se aos seus lábios com furor. "Mas olhe, ouça, Artur...", tenta ainda a viúva antes da entrega. À vista de quem passa e com a bênção particular daquele céu estrelado a vermelho, recordam como o enamoramento é fundamentalmente um vício de boca – a língua muito viva, o verbo sempre urgente.

15.10.23

Mais logo cantam-se os parabéns pelo sexto aniversário de Alicita. À euforia da menina, que vive no resguardo das ilusões da infância, opõe-se o amargor da avó, triste de ver que a descendência não realizará os sonhos a que depois da viuvez se agarrou com unhas, dentes e orações. 
– Esta vai ser pior c'á mãe, já nasceu com o fogo no rabo. 
Tenho para mim que não é intenção fazer piada com a desgraça que envergonhou Portugal no dia exato em que a neta veio ao mundo. E às velhas também passa despercebida a coincidência da metáfora. Só o Marco do ginásio, que faz revista às manchetes antes de decidir o que leva:
– Ó dona Fátima, esse trocadilho era escusado. Morreu tanta gente...
Parece outro, este rapaz. Longe vai o tempo em que se abeirava com as cautelas de um gatinho doméstico, as velhas derretiam-se e por isso empurravam-no para que caísse nas boas graças da rapariga da papelaria. Bom dia, boa tarde, se faz favor, obrigado, gosto em vê-la, continuação, tudo à hora certa de ser dito, tão educadinho e trabalhador, sem vícios nem distrações. À época, jamais ele contestaria as palavras ouvidas fosse a quem fosse e muito menos desafiaria os humores difíceis da mãe da rapariga da papelaria, que havia de ser sua sogra caso o destino urdisse com alguma inteligência. Mal ou bem, Gabi espevitou-o. À custa dela, da sua entrega abnegada, da sua devoção, do hábito de se agarrar a ele e o lambuzar em público até lhe tirar de uma vez por todas o pudor, Marco tem agora um ego mais à medida dos ombros e, por consequência, porta-se com a desenvoltura que tem nos bíceps. 
Porém, à mãe da rapariga da papelaria pouco importa o que aconteceu há seis anos. Mortos? que deus os tenha, nada a fazer, e os vivos com ou sem ajuda hão de ter já ultrapassado as perdas. Importa-lhe a sua desgraça particular, a filha convertida em amásia, a netinha bastarda e insolente. É verdade que esteve quase, quase a perdoá-las. Houve alturas em que se ligaram as três profunda e amorosamente, parecia nascer ali uma cumplicidade cuja argamassa homem nenhum voltaria a corroer. Mas a reincidência da leviandade e os espetáculos constantemente proporcionados à vizinhança da papelaria reacenderam os rancores no seu coração.
– Dona Fatinha, a gente não pode andar sempre às turras com aqueles a quem tem amor. E deixe lá o que os outros pensam, quem está de fora não racha lenha.
– Eu amor tenho-lhes, dona Rute. Mas elas, se mo tivessem na mesma medida, não me envergonhavam assim.
Com ou sem vergonhas, fecha-se hoje a papelaria mais cedo para comemorar. Alicita terá um bolo de unicórnios, a mãe não poupará nos mimos, nos enfeites e nos presentes. E até a avó, quando se achar entre quatro paredes e despir o traje da sua altivez dorida, acabará a cobrir a menina de beijos, dar-lhe-á uma nota para o mealheiro e uma das suas joias, para ela usar um dia, quando for mulherzinha e tiver juízo. 

10.10.23

Na rua larga que corta pelo meio o bairro social, um automóvel branco inverte a marcha de repente, viola o traço contínuo e encurrala o autocarro. Não é um assalto. É um nobre cavaleiro deste século a garantir que a sua amada, vinda a correr em atraso e aflição, não perde o transporte público. Que bela manhã.

3.10.23

Olha a falta que me fazes nestes dias. 
É outubro, o vento devia estar a despir os braços das árvores, a estender nas calçadas os tapetes românticos do outono, a espalhar aromas de mosto e lenha queimada. Mas o tempo é estagnado, tenho a impressão de não avançarem as estações, os dias, as horas. Hoje é igual a ontem, as notícias repetem-se, os ladrões voltam ao local do crime, a terra treme com assiduidade, a fome grassa nas latitudes de sempre, o medo agita os leitos à volta do mundo, os injustiçados rebelam-se contra os abusos e a ignorância em que as civilizações reincidem. Ou poderá ser de outra forma e eu, adormecida, não reparo. O trânsito desta cidade adoece-me. Chego a casa gasta do vaivém, como um pano de limpar, mas continuo a ir e a vir, dou as minhas horas, as minhas melhores horas, as horas de inspiração, energia e clarividência, dou-as à troca de pão para a boca, esquecendo como é magnífico o poente porque quando ele acontece estou morta dentro de um carro, numa fila cujo fim não vejo, rumo a um destino que, afinal, é só pernoita.
A falta que me fazes é a falta de consciência. Preciso que me contes as tuas histórias para eu despertar, não deixes que me embalem, ajuda-me a manter os olhos abertos, puxa-me para a margem e mostra-me a realidade, de fora e de longe, quero ser lúcida até ao dia da minha morte. Às vezes cruzo a perna, pouso o cotovelo na mesa, a cabeça na palma da mão, fico a ver o que não está à vista, qualquer coisa de que me lembre, outra que só esboce, várias que resultem de cisma ou alucinação, talvez quem olha julgue que estudo miudezas – os veios do soalho, a rosácea de um puxador, uma franja do tapete. E exatamente nessa forma de abandono, na curva preguiçosa das costas, no ângulo envelhecido dessa introspeção, que não quero importunada nem pela voz dos meus filhos, reconheço a tua herança.

28.9.23

Enquanto Alicita me relata os primeiros dias na escola dos crescidos, a rapariga da papelaria dedilha no telemóvel com um empenho amoroso e a face toda iluminada. Do outro lado do ecrã está certamente o homem maduro, pois que mais nada além de um romance novo – e com o bónus de ser proibido – deixa as feições naquela suspensão extática. A espaços, a menina lança-lhe apelos, pede validações, precisa de ajuda para responder com rigor às perguntas que lhe faço. 
– A minha 'fessora chama-se Eugénia, não é, mãe? Mããããe...
A rapariga confirma sem levantar os olhos do ecrã, é isso, minha florzinha, investe novamente a dedilhar, vai sorrindo com um ar de quem lembra travessuras de infância e tem ganas de as repetir. O enamoramento tem sempre a mesma expressão, das feiras de subúrbio aos salões de chá da marginal revela-se com os mesmos verbos, o mesmo traje, a mesma embriaguez, o mesmo caráter ardiloso. 
Alicita está grande. Há muito que o colo da mãe deixou de lhe servir, mandou às urtigas a austeridade da avó e, com as velhas, ela tem a arte de namoriscar docemente, de modo a que se se aliem a ela. São difíceis as guerras que se travam na vizinhança, o que a vida dá de prémio ou castigo ali se experimenta e aprende a cada dia e Alicita vai-se preparando para a conquista do mundo entre o balcão da papelaria e a porta de casa, ensaiando alianças, provando limites, subjugando à sua a vontade dos outros. É fácil de ver que supera a mãe em astúcia e perspicácia, dificilmente se deixará manobrar por mãos alheias, muito menos cairá no engodo de promessas cor-de-rosa.
– Menina mais linda. Dás-me um beijinho, que eu logo trago-te um saquinho de gomas?
Assim nos interrompe a cabeleireira, de passagem para o seu posto de trabalho. Alicita recua sem disfarçar a dúvida sobre a pertinência daquele negócio. 
– Não gosto.
A rapariga da papelaria desperta. Num gesto brusco arruma o telemóvel no bolso traseiro das calças e assenta os pés na terra com estrondo, nem reparando como se assemelha à própria mãe:
– Isso são modos de responder, menina? Quer ficar de castigo?
– Eu é que sei se gosto ou não gosto!
E a menina lá se deixaria intimidar pelo tom de voz da rapariga da papelaria? Inúteis são as ameaças, os gritos e outros esboços trapalhões de autoridade. Qualquer criança reconhece uma mãe débil e insegura e, ainda que possa temê-la e submeter os hábitos à sua disciplina, jamais confiará nela o suficiente para seguir os seus conselhos e muito menos os exemplos. A cabeleireira apressa-se a distrair mãe e filha do litígio e a remendar o mal, oferecendo então chocolates já que as gomas não agradam. Na volta da escola a menina que passe lá no salão a buscar, até às oito as portas estão abertas. Mas Alicita fecha a cara, cruza os bracinhos, ganha distância e pose de uma princesa de gelo.
– Não. Eu não gosto é de beijos.
Ignoro em que equívoco, precipitação ou palavra mal dita possa ter descambado entretanto a troca de mensagens entre a rapariga da papelaria e o homem maduro. Mas alguma coisa a endemoninhou porque, ouvindo a sua menina responder assim, assentou-lhe cinco dedos na cara. Apanhada de surpresa, a menina arregalou os olhos, ruborizou mas não se lhe ouviu lamento algum. O troco, deu-o em voz baixa, firme em cada sílaba: burra! burrinha!
E é assim, numa manhã fresca de setembro, quando o calendário promete renovação, quando se sobem degraus, se anunciam mudanças, se retomam contactos e a natureza se dispõe a acolher outro ciclo, é assim que vemos como, apesar de tudo, nos filhos se perpetuam os erros dos seus pais. 

21.9.23

Mariana casou esta noite com um vestido rodado de inspiração campestre, em linho branco e bordados azuis no peito e nos punhos. Quando apareceu para a cerimónia, saltei-lhe para o colo, ela segurou-me e largou a rir, não sei se dos nervos se do gosto de nos reencontrarmos. Desejei-lhe felicidades e pedi desculpa pela minha arrogância, que não me levasse a mal pois se às vezes falo de cima e de longe não é senão para impor respeito às minhas próprias debilidades. Contava que ela fizesse o mesmo, que singelamente dissesse oh, qual quê, eu também sou uma arrogante de primeira, perdoa-me tu também. Então comover-nos-íamos juntas e nesse instante mágico nos tornaríamos amigas até ao fim dos tempos, contra provas, provações e intempéries, pois agora unidas pelo mesmo vício de caráter. Mas Mariana não foi outra que não ela. Como se visse em mim uma criatura esfaimada de afeto ou alguém a merecer condescendência, passou-me a mão nos cabelos e tudo bem, deixa lá, já passou.
Acordei sem lhe ter esmurrado a face, sem lhe ter rasgado o vestido, sem lhe ter revelado o que nas costas dela me disse o homem que a esperava no altar. Estou a tornar-me cada vez mais pacífica quando sonho. Nota positiva para a índole da minha subconsciência.

19.9.23

É de louvar o civismo com que nos toleramos uns aos outros no quotidiano – descontemos as crianças e os doidos. Nós, gente que por imperativo de sobrevivência toma o seu papel na manutenção da ordem, com quanta arte dominamos o fervor da nossa humanidade! As sombras, as raivas, o amargo de certas memórias, o gosto ferroso dos sonhos abortados, os compromissos vagos e sem grande propósito, as vitórias esquecidas assim que celebradas, o corpo que carregamos com os fermentos silenciosos da morte e sob a autoridade das coisas primordiais – fome, sede, sexo –, os receios, as mutilações, as contas de subtrair, a ideia de que o outro, sempre o outro, é autista e estrangeiro, toda esta inflamação sentimental que a cada noite se excede, a luz do dia vem generosamente aliviar. E mal nos olhamos ao espelho, com mais ou menos consideração por quem nos tornamos, escolhemos sair de casa com bons modos – amiúde menos bons mas nunca tão maus quanto em verdade nos sabemos capazes – para entrar nas filas, cumprir as tarefas, fazer os cálculos, pôr os vistos, pagar as taxas, dar as esmolas. Às vezes entredentes uma praga, um insulto, uma ameaça, mas não é nada, logo passa, ora essa, vamos andando, desculpe lá, isto resolve-se, temos de ser uns para os outros, não tem importância, a vida passa a correr.  

18.9.23

Lamento por todas as mulheres que sonharam – e mereciam – homens de espírito elevado e acabaram a contentar-se com os bem educados e trabalhadores. É uma forma de fracasso como outra qualquer mas que, felizmente, ninguém nota. 

12.9.23

O senhor Pereira maldiz a mãe do neto Joaquim que, num assomo de calor e cansaço, desbastou toda a sua cabeleira de fogo e apareceu com um ar andrógino. Levanta-se no espírito do patriarca a suspeita de que a imperatriz possa estar a aderir a essas modas de mudar de sexo, ou de género, ou de genitais, ou de gostos, ou seja lá o que isso for, com todo o respeito, menina. É claro que se trata apenas de um corte de cabelo, uma inocência, uma singeleza, um ato mais ou menos rotineiro, sem narrativa ou entrelinhas, mas cada um atribui às simplicidades da vida alheia o peso dos seus próprios fantasmas. Não fica nada bem às mulheres quererem imitar os homens, não acha a menina? Pergunto-me se o senhor Pereira diz isto a recordar a lendária tareia que a própria mãe terá dado ao marido e concedo: imitar os homens não é, jamais foi, boa ideia. 
Por outro lado:
– O meu filho tem muita sensibilidade. O que esta rapariga lhe fez não se faz a ninguém. 
Conta a mulher do senhor Pereira que o seu benjamim sofre de muitas partes do corpo com pruridos, moinhas, tremores e outros desconfortos vários sem diagnóstico, e que a sofrença se agrava quando a imperatriz vem de visita com o menino. Do estrago que ela fez à alma do coitado talvez ainda por muitos anos ele padeça e por isso é um rapaz mole e indiferente, a quem é preciso ir dando uma mãozinha aqui, um conselhozinho acolá, de modo a evitar que tornem a abusar da sua bondade. Não lhe bastasse a tirania das irmãs, que passaram a infância e a adolescência a jogar com ele como se fora um boneco, ainda foi sucumbir ao feitiço de uma ruiva da parvónia que levanta o queixo muito acima das suas possibilidades. Pensa que é superior aos outros, atira a mulher do senhor Pereira, sem notar que ao julgarmos alguém por se supor mais do que é, não estamos senão a supor-nos mais do que somos.
Dois dias depois da conversa, vejo a imperatriz a seguir devagar com Joaquim pela mão. Como é hábito, vai a cantar-lhe canções que a generalidade das mamãs, por subestimar o intelecto das suas crias, consideraria impróprias: when she was young she was a cow and all day long she milked the stars, she taught me women to survive must be unfaithful to their child. Nada perdeu em classe, nem teria esta mulher como perder o que por natureza e vocação lhe pertence e está para além de todas as coisas que use ou desuse. Com ou sem a cabeleira de fogo, é francamente bela e esperta o bastante para dominar os Pereira. Continuem a portar-se como cães mansos e pouco importará o que rosnam mal ela vira costas. Que causas, vontades, delírios ou transações a terão harmonizado com o Pereirinha ao ponto de conceberem um filho – eis o maior mistério da vizinhança deste blog. Mas qual de nós, na certeza de que jamais se distraiu a comer do que não presta, vai atirar a primeira pedra?

11.9.23

Desperto, por coisa nenhuma, àquela hora da noite obscura e surreal em que as más decisões são tomadas e em que cada rumor levanta a suspeita de uma tragédia. Num ápice, suponho desacatos, acidentes, crimes que à luz do dia, bem sei, se tornarão risíveis. Como são grandiosos os favores que o medo presta à imaginação! E esta, por sua vez, devolve em dobro, enredando-se ambos numa das mais cúmplices e frutuosas ligações que a mente humana apadrinha.

3.9.23

Que ternura benfazeja, que sopro de esperança, que alívio de alma este mês de agosto. Por tão pouco esperar dele, atribui-lhe os direitos e deveres de um quotidiano vulgar e fui andando. Porém, em tudo agosto se superou. Entrei nele a arrastar-me com preguiça e má vontade e cumpri-o, afinal, como uma bailarina de trapézio.

28.8.23

Ao cabo de algumas semanas de excessos, volto à clausura do mosteiro para rever certas lições que, por teimosia ou genética, jamais aprendo. Retiro-me sem fotogenia, sem momentos instagramáveis, sem cenários de padrões étnicos, filtros de sonhos ou árvores da vida. Aqui o abrigo é pedra, os dias são de nudez e austeridade, silenciosos e por vezes até obscuros. Mas é certo que posso pasmar sobre uma parede mofada com a mesma satisfação com que outros o fazem sobre o dourado líquido de um poente e enquanto esses são animados pela ideia de que todas as coisas são possíveis no infinito universo, eu aceito que todas as coisas são inevitáveis na finitude que sou. Não busco clichés sobre a felicidade, o amor-próprio e outras boas intenções de que o inferno das bocas alheias já está cheio. Ambiciono coisas maiores: decifrar enigmas, investigar a verdade, levantar as proibições que os deuses fazem aos humanos. Mas mal me sento a meditar diante da face iluminada de Buda e dos seus olhos repousados, sem sermão, doutrina, castigo ou fantasia, fico refém da lembrança dos meus apetites mundanos: waffles com chocolate quente, dois tragos de hidromel, as mãos competentes do homem cínico, escrever com propriedade sobre coisas que, em bom rigor, ignoro.

24.8.23

Esta cidade deixou de pertencer aos que têm o seu sangue. Nas ruas do centro, já poucos falam a minha língua ou cobram o que eu posso pagar. A realidade pura e simples deixou de bastar como experiência, é preciso um conceito, um simulacro, um rótulo, uma recriação, um ambiente. A cultura fez-se carnaval quotidiano, mais nobre no argumento do que no bem que deixa. O Porto do Carlos Tê desapareceu, cansou-se de moer sentimentos no seu jeito fechado e vendeu o corpo e a alma, abandonando os próprios filhos na sarjeta.  

18.8.23

Minha Nossa Senhora Daqui e Dacolá, que varres as angústias para as margens do verão e trazes à luz os santos que dormem na sombra fresca das igrejas e vestes as crianças como os anjos que jamais hão de ser e és levada em ombros e espalhas cheiro de farturas e misérias, vê bem que os homens compraram agosto inteiro só para ti, então faz o jeito e, ao passares na minha terra, à porta da minha casa, na face negra da minha alma, pousa a tua mão, em cujos milagres descreio, pousa-ma nas feridas, benze-me a carne viva, estanca-me o sangue, faz também a mim o que fazes aos outros, põe-me a girar nos carrosséis das rotundas, tira-me o tino, o fôlego e a memória da véspera, enche-me a barriga de gorduras queimadas e vinhos baratos, suja-me desse pó que se levanta nas pracetas onde os homens se embriagam e as velhas dançam como se chamassem o diabo e as crianças confiam em quem não devem e o tempo futuro dos verbos nunca se aprende em condições. 

11.8.23

Dentro de um par de dias, a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada embarcará para Barcelona, a visitar o rapaz. Um aborrecimento, com esta caloraça e os aeroportos à pinha, mas o que é que uma mãe não faz por um filho? pergunta e, num suspiro, espalha ao redor o açúcar do pastel que abocanhou com mais ganas do que dentes, ou não fosse a gula, entre todos os prazeres que nos condenam aos infernos, o mais desajeitado. Contudo, a verdade é outra. Pudesse esquivar-se e repetiria mais um agosto na clausura, trasladando as pilhas de livros entre o quarto e a sala, tropeçando na impaciência dos gatos, mastigando a saudade de um corpo presente, não para amar, que disso já não se acha merecedora, mas para aquele consolo instantâneo que o êxtase oferece e que só comove quando acontece nos braços do outro. Está-se bem é em casa, na companhia de uma dor tão velha que já nem prega sustos nem pede contas. Mas como se desculparia ao rapaz, há mais de cinco anos a pedir a visita da mãe? E o que diria a esses, por tudo e por nada deslumbrados, que veem a sorte grande numa casa à disposição para lá da fronteira?
– Ai, sotôra, quem me dera embarcar eu, fosse pr'onde fosse, e tão cedo ninguém me punha as vistinhas em cima.
Diz a cabeleireira. O riso dela troa como o das bruxas, engasga-se com o fumo do cigarro e Gabi prontamente acode, sovando-a entre as escápulas. Talvez aproveite para fazer justiça à sua condição de assalariada, toma lá esta por todas as horas além da hora, esta pela esmolinha ao fim do mês, esta pelo subsídio de férias que só vem depois de as gozar, esta pelas tostas mistas almoçadas no gabinete da fotodepilação para não fazer esperar as doutoras. 
– Se é de fugir que tem vontade, o melhor é falar com um especialista, pode estar a precisar de tomar alguma coisa. 
Assim aconselha a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada, ou, melhor dizendo, assim fala o roto ao nu e dele se apieda. Coitada da professora. A morte avança para ela a passos largos. Não a morte definitiva, material e misericordiosa, que poupa a alma ao pavor da eternidade e à insuportável carga da sabedoria, que termina coroada de epitáfios e a encher de culpas o coração dos vivos. Antes a morte que obriga a manter os olhos abertos e arranca o corpo à cama todos os dias e o faz tombar de novo a cada noite sem lhe ter autorizado uma única esperança, uma única carícia.

14.7.23

Qualquer história tem tantas versões quantos os seus personagens e tantas perspetivas quantos os lugares de cenário. Assim se compreende, e quiçá se desculpa, que entre todos os intervenientes desta trapalhada amorosa ninguém assuma faltas ou fraquezas. Pergunte-se à mãe da rapariga da papelaria e ela jamais considerará a sua parte de responsabilidade no coração fantasioso da filha. Deu-lhe do bom e do melhor, fê-la mulher, aturou-lhe fraldas sujas, noites más, caprichos, metamorfoses, desvarios, vergonhas que toda a gente já sabe. Agora, expressa-se com a teatralidade própria das mães orgulhosamente feridas, mas onde é que eu errei, onde é que eu errei?, à espera, não de um indulto, mas da coroação pública dos seus esforços. Cheias de pena, as velhas mordem o isco: qual erro, qual quê, dona Fatinha! educou-a com tanto esmero, todas fomos testemunhas, mas os azares acontecem, é o que é. E Alicita, terá culpas? A inocência, só por sê-lo, merece absolvição sem reservas? O peso que um filho faz às costas da sua mãe não é um empurrão para certas saídas de emergência? Não é certo que, por vezes, só uma leviandade remedeia as dores, o cansaço, o medo, o custo de amar incondicionalmente? 
Do homem maduro não se conhece versão, argumento ou desculpa, mas pela boca da rapariga da papelaria as velhas ficaram a saber que tudo se encaminha para um desses finais em que pode dizer-se que o amor tudo vence, até a depressão crónica da mulher dele, razão pela qual o divórcio se desaconselha agora. As coisas estão a resolver-se, ele só precisa de tempo. 
Se a rapariga da papelaria tivesse os dois pés firmes na realidade em vez de com eles bailar em contos de fadas, saberia que há no argumento dele menos generosidade do que se pode supor. A tantas outras mais ou menos tontas do que ela já se ouviu contar esta historieta e o desenlace nunca favoreceu senão o infiel. Casado há vinte e três anos, o homem maduro está subjugado ao tempo, que converte os laços em nós e os aperta até ao sufoco, e a um regime quotidiano de "tudo incluído" que seria insensato desperdiçar. E um homem subjugado é sempre, em potência, um traidor. Nas salas da governação, nas empresas, nos casamentos.
Mas que importância tem o que digo, se a rapariga da papelaria é toda ela um retrato de festa e esperança? O seu ego resistiu ao julgamento público, o que nas imediações da papelaria foi dito e maldito comichou mas não envenenou. Ela confia que vive finalmente uma história de amor intenso, dessas que reviram as vidas do avesso para, no final, depois de lágrimas e sangue, colocar tudo em lugar justo e definitivo. Deixemo-la. Aventurar-se é um direito seu e também a forma mais eficaz de castigar a mãe. 

27.5.23

Das coisas que por amor nos dispomos a fazer, já muitas histórias rezam e não há de ser esta a engrossar o rol. Parte delas são rasgos de heroicidade, fazem crer que a paixão alcança os impossíveis e por isso são aplaudidas, elevadas, versejadas, prolongando assim a doença do romantismo. Mas outras histórias há, menos felizes, que precipitam os seus protagonistas num vórtice de indignidades, orientadas por esse nobre valor a que se chama esperança e em nome do qual toda a sujeição se toma por legítima. Destas, infelizmente, se fala agora na papelaria pois o novo amor da rapariga, pleno de bons augúrios e abençoado pelas velhas, revelou-se, afinal, uma armadilha. Em armadilhas já todos caímos, é verdade, e quantas delas montadas em lençóis alvos, insuspeitos, sem vinco a apontar: Mas o caso da rapariga da papelaria agrava-se porque é tão grande nela o medo de morrer solteira e desconsiderada pelo mundo, que se entrega sem cheirar o perigo. Só num coração livre de medo pode funcionar a intuição. 
O caso conta-se em duas linhas e dá mais pena a banalidade que é do que a infelicidade que trouxe. O homem que vinha alegrando os dias dela, a pessoa madura, afinal é um marido enterrado até ao pescoço num lar de família. Desses que, por suspeitar de um desvario da mulher e por esta se encontrar ausente por mais tempo do que o razoável, correm logo a garantir-se entre outro par de pernas, não vá o diabo tecê-las e deixá-lo morrer de todas as fomes. Se para cada panela se diz haver no mundo um testo, certamente que para cada patife há pelo menos uma tontinha. E não é a rapariga da papelaria a mais perfeita?
Gabi festeja. Vê desconstruir-se diante dos olhos do Marco a imagem santificada da sua rival e esse é o melhor desfecho para a disputa que o seu coração –  também medroso e por isso imaginativo – inventou. Meter-se com um homem casado – ah, não me venham dizer que ela não sabia porque uma mulher sente, uma mulher sente! – é a prova de uma falsidade sem tamanho, é falta de tudo!, diz entredentes no vaivém da lima. Falta de decência, falta de respeito, falta de juízo, falta de esperteza, falta de caráter. No salão, ninguém trava a língua de Gabi. Quem resiste a um carrossel de maledicência? Só a dona Maria Isabel (há quanto tempo!): 
– Evite ser demasiado moralista, menina, que aumenta o risco de darmos consigo precisamente entre os imorais. 
– Não percebi.
No meio do desastre, só as velhas lembram que enquanto há ternura há esperança. 
– Dona Fatinha, a sua filha deve ter mau olhado. É a única explicação.
Comovi-me com o veredicto. Estas velhas, tantos anos de roda da papelaria, a raspar o sonho dos milhões que nunca saem e a ver aquela doce rapariga crescer, desgostar-se e dar à luz, como haviam de a ofender, tomar por estúpida ou colar o triste rótulo de amásia? Não, elas têm outro diagnóstico e assim mantêm intacta a inocência da sua menina, para quem o destino tem sido um burlão de primeira. Há muitas formas de ser generoso para com os erros dos outros. A cegueira de faz de conta pode não ser a mais certa, mas há horas em que é a única possível.
Dona Fatinha não abre a boca. Anda como um fantasma, perdeu o fio da meada dos dias, descuidou o cabelo, só aparece de tarde na papelaria. A filha precipitou-lhe a velhice, já só espera dela o golpe de misericórdia.