9.3.22

Homem: venho com um dia de atraso – haja em mim coerência, esse atributo inútil de que só os empedernidos se vangloriam – dizer-te que não precisamos que nos estendas a mão quando subimos ao palanque como se as luzes da ribalta fossem um favor que nos concedes. Nem nos anuncies como se fossemos raras, porque somos vulgares como tu, rameiras ou cientistas somos vulgares, sujeitas aos acasos genéticos e à roleta onde o destino joga em igual proporção a tragédia e o sucesso. Mas falas dos nossos talentos e inteligências de maneira que parecem uma agradável surpresa, uma paisagem desviada do roteiro a merecer manchetes de jornais nos dias em que se divulgam estatísticas, estudos, resenhas, metas. Venho dizer-te ainda que não serão as tuas odes, em verso ou prosa, a erguer-nos o corpo do desastre após o parto e que é inútil sacralizares os ventres quando sangram, pois daí não vem analgesia nem entendimento. Não pagues com paternalismo nem com adulação a dívida que os teus antepassados contraíram quando tomavam o que nos pertencia, virtude, filhos, trabalho, dignidade, dinheiro, paz. A porta que gentilmente seguras para passarmos ofende menos e dá muito mais jeito.