30.8.24

Era capaz de me casar com o homem cínico só para pertencer à terra dele. Amaria prontamente esse outro rio, pelo qual posso dar o meu à troca, cansada que estou do escarcéu, das navegações em cortejo, dos arraiais flutuantes. Com a mesma vaidade com que apregoo as maravilhas do meu berço, seria capaz de dizer alto lá, que sou da raia, sou bilingue e melancólica, tenho uma casa virada a montante que os céus fustigam sem trégua com chuva miúda, noite e dia, dia e noite, em todas as estações. Faria votos a estas muralhas e esta ruína, ao verde tão verde, um verde mais que verde, um verde matizado e labiríntico que o punho dos homens não arrancou pela raiz nem dobrou para matar as suas fomes, à luz que doura as águas ao entardecer como se as premiasse pela espera, com suavidade e justiça, sem ostentação, sem esbanjamento, num brevíssimo estio. Posso ser de qualquer Norte e tanto me faz de qual sou, valem igual o norte invicto, o norte sangrado nos socalcos, o norte brumoso e húmido que range nos ossos dos velhos, o norte infernal e renegado que manda para lá do Marão. Todos se entendem e acolhem, tal qual os vizinhos de porta sempre aberta que dão de comer aos filhos uns dos outros e lhes limpam o nariz com o mesmo lenço de avental, por saberem que não é fácil a vida de ninguém. 
O homem cínico acha graça. Digo que quero ficar, tenho os olhos carregadinhos de paisagem, duas nascentes cujo frémito seguro com disciplina, e ele sorri, terno, como sorriria à criança pequenina que só se encanta por certas coisas do mundo porque ainda ignora as suas faces mais duras.