À hora do lanche, no pão quente, Gabi tem o corpo cheio de vontades todo debruçado sobre a indiferença do Marco do ginásio. Ele folheia o Notícias, sorri-lhe a espaços para a manter em lume brando e é de uma doçura vaga, ensaiada, a voz com que pergunta, sem a olhar: queres a fatia sem côdea? Fogem ambos à solidão como foge o diabo à cruz, inventando-se como amantes que não são. Ele obtém dela uma adulação fútil, sem tino nem consistência, e, sempre com um olho arredio, fixado na porta da papelaria, paga-lhe em míseras prestações de ternura que ela abocanha como um cão faminto. Embora não sejam sobre Gabi os pensamentos do Marco ao acordar, tampouco os que confia ao travesseiro, sempre vai tirando dela alguma compensação pelo trabalho que dedica ao esplendor do próprio físico. Podia ser qualquer outra, mas por acaso foi a manicura sonsa que se encantou com a sua musculatura e o seu desusado cavalheirismo e o acaso acaba por ser autor dos mais importantes acontecimentos das nossas vidas. Com efeito, Gabi resgatou-o à cómoda posição de sofredor beneficiário da simpatia das velhas, aplicou-lhe feitiços básicos e da noite para o dia lhe atiçou o sangue, fazendo funcionar a seu favor o que à outra parecia estar reservado. Não se amam, mas bastam-se. E porque não?