Sempre que meia dúzia de inteligentes se reúne a debater a falta de hábitos de leitura dos portugueses, tenho um sentimento de atração-repulsa – mais repulsa do que atração, admito, mas sucede que por vezes tenho tempos mortos, é tarde para umas coisas, ainda cedo para outras, e estes entretenimentos encaixam aí para me acordar o espírito e olear a indignação, que, como os ossos, emperra com a maturidade. Que insuportáveis se tornaram os evangelizadores! Não porque não seja nobre a sua causa mas porque é ignorante o seu discurso, já que desconhecem os sentimentos e a realidade daqueles sobre quem tanto debatem. Nunca vi que chamassem a explicar-se os que não leem. Autores, editores, professores, curadores, comunicadores, os mesmos de sempre monopolizam os palanques, apresentam os gráficos, as estatísticas, as análises e as soluções: tem de ser desde pequeno, tem de ser todos os dias, tem de ser à noite, tem de ser nas férias, tem de ser nas bibliotecas, têm de ser os pais, têm de ser os professores, tem de ser gratuito, tem de ser assim ou assado, como a bula de um medicamento cheio de ciência mas que nunca passa na garganta.
Ler é um ato trabalhoso, um investimento de tempo e de espírito, de onde a mente se distraí amiúde e por dá cá aquela palha e que, entre os espinhos e enguiços do quotidiano, custa manter. A roda-viva do mundo faz muito barulho, atordoa a mente, mói a alma, tapa as brechas com betão e entulho, respirar é difícil, quanto mais ler. Os que leem nas tardes de invernia, instagramavelmente aninhados no sofá com manta e chá, ou nas esplanadas do estio, com chapéu de abas largas e gin à mão, e supõem que essa seja a disponibilidade e a vocação de todos, o que sabem? E, de resto, quem ajuda? Professores nas escolas chatos e estreitos, críticos de literatura chatos e vendidos, escritores chatos e arrogantes, tertúlias e mesas redondas de feiras com disputas de pavões e filas de bajuladores, listas de livros lidos que a gente tem agora a mania de exibir para efeitos de aprovação social e até de acasalamento? Então às vezes a literatura nem parece um tesouro mas um circo gigante, espalhafatoso e com bilhetes demasiado caros para péssimos lugares.