23.11.22

Vejo Bárbara assim que entro, está de costas para a porta, debruçada sobre qualquer tarefa dessas que convocam toda a intimidade do corpo e no seu abrigo sucedem, como escrever, costurar ou arranjar as unhas. O motivo pelo qual não se vira para um cumprimento só depois atinjo, mas tenho a certeza que me pressente porque cheguei a arfar. Estou tão cansada! Gritei demasiado à médica que encolheu os ombros ao sofrimento agudo do meu menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno. Limitou-se a escancarar-lhe a boca, apontou um feixe de luz à goela e disse, do alto da pilha de livros marrada por imperativos de ganância: deram cabo dele, mas não posso fazer nada. Na minha boca, a ameaça de vómito. Nem mandar um relatório à polícia? perguntei, avançando já para ela, o sangue a levantar fervura, o coração num rodopio centrífugo, a musculatura dos dedos a preparar o golpe. Não, e pôs-se a lavar as mãos como num dia ordinário, de viroses, traumatismos, cálculos renais, intoxicações, mortos por esperas demasiado longas que ela esquecesse ao final do dia  –  a dor alheia é tão diminuta. Não me lembro de sentir tamanha raiva, nem me sabia capaz de agredir com tal violência, de arrancar cabelos e dar cabo do mundo à dentada. Talvez a tenha matado, deixei-a de bruços sobre o lavatório, exausta de se defender. 
De modos que quando entro e vejo Bárbara acho que, embora de costas, ela me sente porque a minha respiração tem vestígios ruidosos do desarranjo emocional e da violência. Mas, como eu disse, ela não se vira, a não ser quando lhe toco nos ombros e pergunto Como estás? Enfrenta-me, então, com os olhos líquidos de tristeza e incredulidade: Não se nota? Disfarço o horror e desculpo-me com a sentimentalidade primeira que me ocorre: Não é no que vejo mas pela forma como falas que sei se estás bem. Bárbara tem o rosto deformado, semelhante a uma pera, duas covas sem luz para ver o mundo, derrames por ambas as faces e na testa mais abundantes, roxos como a morte, elevando-se pelo couro cabeludo fora e visíveis através de peladas. O cabelo que sobrou perdeu a cor. A boca é uma fenda obscena, a rir com esforço da ironia do destino. Envelheceu de modo abrupto, está a caminho de cadáver ou monstro. Quero ter pena dela, mas o meu coração rejubila por qualquer coisa que podem nomear como vingança, que os códigos da moralidade punem com perpétuo arrependimento e que por isso vive no subterrâneo de almas dóceis e civilizadas a comer as mágoas do dia anterior. 

Não sei como consigo ser tão má quando sonho. Eu, servida crua no divã, havia de ser um banquete para os doutores da psique.