Lígia, a mais velha das manas Pereira, está a aquecer os nervos para a maratona do próximo ano letivo. A decisão de retirar a sua menina exemplar à guarda do colégio privado que desde os três anos tem sido segunda casa para a largar numa escola pública, pede-lhe uma musculatura emocional nova, resistente aos próprios temores e às opiniões alheias. Mordiscam-lhe já a alma culpas que jamais havia sentido e, entre todas, a pior é a impressão de estar a abandonar a filha. O resto da família só desajuda. Cutucam-lhe as sensibilidades listando toda a sorte de misérias do ensino providenciado pelo Estado, a começar pela incompetência técnica, passando pela anedota das atividades extracurriculares e pela duvidosa qualidade da alimentação e indo, por fim, desaguar ao que lhes é verdadeiramente importante: a exposição a perigos oriundos de certas zonas cavernosas da sociedade, onde a doutrina do vício, da insurreição e da linguagem ordinária é absorvida desde o ventre das mães. Há necessidade de tirar a menina de onde está, se está tão bem? É dinheiro? Que diga, pois isso é o de menos, insistem os avós Pereira. Não, não é dinheiro. Lígia, embora assustada de morte, tem uma convicção que seria comovente se não se tratasse de uma vulgar snobeira, uma bagatela da sociologia do salão de chá:
– Quero que a minha filha tenha contacto com todo o tipo de pessoas.
Pobre mana Pereira, tanto esforço para maquilhar a mediania da inteligência e a ligeireza do caráter, tanto tempo a estudar modos vários de ter opinião própria em workshops e livros de venda fácil, e é isto. Supondo que existe aquilo a que chama de "tipo de pessoa", perguntamo-nos a que tipo terá ela a ilusão de pertencer? Pobre mana Pereira, que atravessa as noites de insónia a cismar nas decisões mínimas do quotidiano, ponderando o peso que cada palavrinha dita ou por dizer terá no futuro da filha, esquematizando os caminhos – e incluindo os atalhos – que desembocam no êxito ou na infelicidade, na grandeza ou na delinquência. E à sua alma confusa, que se distrai na superfície das coisas, não ocorre que estes não sejam destinos alternativos ou opostos, que o mundo pode ser, afinal, um sarilho de sobreposições, uma infinidade de matizes, e que dentro da alma de cada "tipo" que se mostra, há centenas de outros "tipos" que se calam ou morreram, por acasos, no caminho. Sossegue, Lígia, pois onde quer que a sua menina esteja, está invariavelmente com "todo o tipo de pessoas".