17.9.24

Porém, não apareceste. Apareceu antes o meu pai, o que é natural, já que estamos às portas do outono, seria o tempo de irmos a Castro Daire comer arroz de feijão com salpicão, o tempo de ele interpretar a ondulação animal das minhas ancas e os meus excessos de apetite, tu não estarás grávida? e eu, tão leviana, menosprezando o quanto pode essa raríssima aliança entre ciência e intuição que nele era quotidiana, original e generosa: que disparate, nem pensar. Apareceu antes o meu pai, dizia eu. E fomos juntos de automóvel, ele conduziu com a serenidade real, era mesmo ele e não outro como acontece em certos sonhos que reconfiguram o mundo sensível, era exatamente sua a face, o olhar sóbrio, a constância, a lucidez, o longo silêncio que não usava para se ausentar mas para se fazer mais atento – quem fala muito distrai-se do fundamental. Súbito, parou. Desligou o motor, notou os próprios pés, disse sei qual é a embraiagem, o travão e o acelerador, mas não consigo usá-los, estou a ter um enfarte. Trocámos de lugar, sentei-me ao volante e antes de rodar à chave despertei, obviamente, sem qualquer vestígio dele, nem rosto, nem cheiro, nem gesto, nem sopro, embora me tenha levantado da cama com ele sobrevivo, vitorioso, em cada uma das minhas células.