É de louvar o civismo com que nos toleramos uns aos outros no quotidiano – descontemos as crianças e os doidos. Nós, gente que por imperativo de sobrevivência toma o seu papel na manutenção da ordem, com quanta arte dominamos o fervor da nossa humanidade! As sombras, as raivas, o amargo de certas memórias, o gosto ferroso dos sonhos abortados, os compromissos vagos e sem grande propósito, as vitórias esquecidas assim que celebradas, o corpo que carregamos com os fermentos silenciosos da morte e sob a autoridade das coisas primordiais – fome, sede, sexo –, os receios, as mutilações, as contas de subtrair, a ideia de que o outro, sempre o outro, é autista e estrangeiro, toda esta inflamação sentimental que a cada noite se excede, a luz do dia vem generosamente aliviar. E mal nos olhamos ao espelho, com mais ou menos consideração por quem nos tornamos, escolhemos sair de casa com bons modos – amiúde menos bons mas nunca tão maus quanto em verdade nos sabemos capazes – para entrar nas filas, cumprir as tarefas, fazer os cálculos, pôr os vistos, pagar as taxas, dar as esmolas. Às vezes entredentes uma praga, um insulto, uma ameaça, mas não é nada, logo passa, ora essa, vamos andando, desculpe lá, isto resolve-se, temos de ser uns para os outros, não tem importância, a vida passa a correr.