19.1.23

Para não perturbar a santa paz que o nascimento do Menino inspira nos lares da Humanidade, Ana Isabel, a mais nova das manas Pereira, esperou que janeiro repousasse em névoa e melancolia para comunicar à família o fim do seu casamento. Até então, ninguém ousou corromper o espírito natalício, quanto mais não fosse porque a imperatriz, Joaquim e a avó beirã vieram para a consoada e era fundamental exibir-lhes as alegrias que perderam por se enraizarem nas encostas brumosas do fim do mundo. Mas depois, na ressaca do fígado e do cartão de crédito, arrumados os enfeites e apagados os brilhos, os Pereira tiveram de ouvir na própria casa o eco da palavra maldita – divórcio. 
Mas porquê, porquê, porquê, perguntaram, mais pela incredulidade do que pelo interesse nas verdadeiras razões da filha. Atiraram à cara de Ana Isabel todas as suas falhas de caráter, assumindo à partida que a ela cabia a culpa do desastre. Egoísta, preguiçosa, desde pequenina que amua e vira costas sempre que o gozo não paga o trabalho e as maçadas. Ora, é dos livros e dos sermões que a preguiça não sustenta casamentos. É ou não verdade que, ao assinar o contrato e desfiar as juras defronte do altar, Ana Isabel comprometera-se a levar até ao fim a empreitada, mesmo que o amor se esvaecesse ou de outras formas, menos excitantes, se travestisse? Assim lhe perguntou a mãe – por palavras diferentes destas – enquanto o senhor Pereira abanava a cabeça a reprovar o fracasso daquela filha do meio, de quem esperava mais virtude. Ana Isabel, muito necessitada de colo, explicou que há muito tempo ela e o marido invisível se deitavam calados, dormiam opostos e acordavam estranhos. Entretanto, a menina exemplar cresceu e deixou de valer como pretexto para adiar a decisão mais honesta, que os salvará aos três de amargurarem juntos ou cada um para seu lado no sofá dos psicoterapeutas. 
Lígia, a irmã mais velha, não se aliou a ela como seria de esperar. Tão unidas na maledicência, na intolerância para com os pais, no desdém pela imperatriz, na inveja de Joaquim, deixam agora exposta a fragilidade do seu laço, demonstrando como tantas vezes o que nos liga aos outros, mais do que o entendimento profundo, é a existência de inimigos comuns. São os fantasmas, não o afeto, que sustentam a lealdade entre os companheiros de trincheira. Então Ana Isabel não pôde sequer contar com a irmã, que engrossou a voz para a acusar de imaturidade e fazer-lhe ver que, no médio prazo, o prejuízo de descartar o marido invisível iria revelar-se muito maior do que à partida ela supunha. Para não falar da instabilidade a que vais sujeitar a tua filha, como é que consegues ser tão egoísta? 
O irmão demitiu-se de opinar e enquanto afrouxava no sofá, procurando desembaraçar-se, com suspiros múltiplos, das contrariedades do dia que findava, das dores lombares e da moinha nas têmporas, pontuou a discussão como soube: ela é que sabe da vida dela. E foi assim que, em estrita obediência à própria natureza, fiel à sua moleza de caráter, sem raciocínio, esforço, sacrifício ou hipocrisia, o filho caçula do senhor Pereira disse a primeira coisa válida que sobre o assunto foi dita.