E então – diz-me a minha sobrinha emigrada na vizinhança da guerra – as coisas têm sido mais ou menos assim.
Pega no telemóvel, dedos para trás e para diante a abrir as cortinas de um espetáculo de sangue e desespero, filmado por dentro.
Estes são todos portugueses – explica-me – também lá estão mas ninguém diz nada e morrem como tordos no sobrevoo das cidades inflamadas para onde se lançam sem hesitar. Se pensam duas vezes, empurram-nos. É para isto, só para isto e nada mais, que durante meses ou anos se treinam os militares: para aperfeiçoarem a vocação do suicídio. Estes rapazes levantam voo no doce engano do romantismo, a juventude é traiçoeira e troca as voltas à significância dos verbos, fá-los tombar em sacrifício vão, no erro repetido, na desumanidade legitimada. Heróis serão as pessoas quotidianas e vulgares, que resistem a tudo sem uma causa maior, sem chamamento, promessa ou louvor.
E anda uma mãe a criar um filho para isto – suspira agora a minha irmã. Estranho-a, não é habitual socorrer-se de chavões. Mas testemunhando aquele horror, vendo a rapidez com que o fogo consome os paraquedistas como se fossem papel, quem se preocupa em ser elegante ou original? E, verdade seja dita, com meia dúzia de máximas e provérbios se conta a tragédia humana. A culpa de nos supormos maiores ou merecedores de mais é de poetas e dramaturgos.
Acordo então em sobressalto, acendo a luz, agarro-me com unhas, dentes e razão à realidade possível, à solidez do quarto, estarão bem os meus filhos? Na minha cabeça ainda ardem os rapazes, a sua carne viva continua a derreter, a sua bravura desmaterializa-se debaixo dos olhos de deus e da humanidade. São quatro da manhã, a mais imisericordiosa das horas noturnas. Desfaço a cama toda nas voltas do corpo. Os paraquedistas ainda ardem. Creio então que, pela primeira vez na vida, pego num livro no meio da noite e leio, leio, leio, leio até ao canto dos pássaros, que é a salvação dos insones.