Esta florzinha salvou-me. Diz-me a rapariga da papelaria enquanto disciplina o cabelo de Alice sob o jugo de dois criteriosos totós de elástico cor-de-rosa. Fá-lo com aquele brio que só as mães e a menina nem se queixa, cantarola sozinha melodias da sua imaginação e explora o interior do nariz, deixando a cabeça oscilar para um lado e para o outro, sem resistir aos puxões. Tem crescido muito. Está com os olhos cada vez mais profundos, redondos e espertos e, para alívio da rapariga da papelaria, passou-lhe o vício de negar, contrariar, desdizer e atirar-se para o chão como mártir desse mundo de duvidosas intenções e maus exemplos que é o dos adultos. Fiteira, é uma fiteirinha, a menina! Mas desengane-se esta mãe amorosa se julga que ao seu coração será autorizado repouso. Acabaram as birras por coisa nenhuma, é certo, mas chegaram os porquês e disso se queixa já a avó, desabafando sobre o atrevimento da menina, que tem uma língua sem freio e já lhe causou grandes embaraços diante de vizinhas e clientes. Esta menina tem de ser educada. Coitada de Alice. Reprimem-lhe as ganas de entender o mesmo mundo em que a obrigam a comportar-se. Perguntar é um ato de coragem, de valor moral muito superior ao da inteligência da resposta. Para onde evoluiriam certos pais se não fossem as perguntas dos seus filhos? Mas, enfim, Alicita – diz a avó – terá de habituar-se a estar caladinha. Não é, minha riqueza? E ela, com a cabeça de um lado para o outro, diz que sim só por dizer. Não se habituará. O hábito nunca trouxe nada de bom, ainda que nos tenham impingido o seu valor como base da decência e da estabilidade. Dane-se a estabilidade e junto com ela a decência. Quem precisa de uma ou de outra quando as linhas da vida são curvas, precipitadas e obscenas?