(Cedo ou tarde, havia de rebentar esta guerra. É para isso que serve o tempo de paz e se fazem pactos e acordos e se distribuem partes, posses e rendimentos: para que todos repousem e sejam devidamente munidos de convicção e energia. Assim, na hora em que por velhas razões se inflamarem as sensibilidades e se violarem as regras, partirão para o combate com a força inteira e voluntariamente dispostos. O tempo de paz é sempre breve. Fosse longo e entorpecer-se-iam as paixões, as certezas, as ganas, os músculos. )
Alice tem os deditos suspensos sobre as teclas e a rapariga da papelaria, a imaginar a filha nas luzes da ribalta, pede sossego à audiência – a avó, duas ou três velhas, o Marco do ginásio com o Notícias sob o bíceps, e eu, que fui retida a caminho da farmácia. Silêncio, que a menina vai alinhar-se com os deuses e o pianinho de brinquedo revelará o quão próximo deles chegam os que, eleitos entre humildes e anónimos, são talhados para deslumbrar os corações humanos. Alicita espreita a mãe pelo canto do olho e levanta os braços a imitar os trejeitos desses génios estereotipados da música erudita. Mas, ao invés de os pousar nas teclas com a delicadeza esperada, deixa-os cair desastradamente e põe-se a bater com um ritmo e uma violência que só ao bombo da fanfarra conviriam. As velhas sobressaltam-se. O Marco do ginásio sorri, maroto, solidário com a infância. A rapariga da papelaria encolhe os ombros. Que deceção.
Alicita ignora as reações, ninguém mandou que empenhassem nela tão grandes expectativas. A avó explica que a menina anda arisca desde que é sabido que vai ter um irmãozinho. Um meio-irmão, corrige a rapariga da papelaria, com o indicador levantado. E uma impressão de poder, de exclusividade, fá-la levantar o queixo acima do hábito. As velhas distraem-se das raspadinhas e arrebitam a orelha:
– Como assim, dona Fátima?
É o que é: a mulher do pai de Alicita está de cinco meses.
– Mas isso é uma alegria para a menina, que rico presente é um irmão!
Meio-irmão, insiste a rapariga, uma fúria adolescente rebrilha nos seus olhos, pousa com estrondo a resma de jornais no balcão. Meio ou inteiro, também não é o que vem ao caso, esclarece a avó. Parece que, assustada com as coisas da pandemia e receando que o coronavírus faça mal ao bebé, a grávida não sai de casa há três meses nem autoriza ninguém a entrar. Então, a menina nunca mais viu a madrasta nem chega perto para ajudar a preparar a chegada do irmão. Meeeeeeeeio, a rapariga está a um passinho do descontrolo. Nos fins de semana que lhe cabem, o pai vem buscá-la e passeiam-se o dia todo em ruas e jardins – shoppings quando calha chover – à noite devolve-a, vai para casa, despe-se todo à entrada, lava-se e só depois lhe é permitido chegar-se à mulher. Com isto ninguém espera que os nervos da menina resistam, anda teimosa, birrenta, provocadora, dorme mal, come pior. As velhas condescendem:
– As crianças sentem tudo, mesmo o que não percebem.
E os adultos também! e, como se lhe desatassem um nó, a rapariga da papelaria vaza em torrente o que lhe ordena o sarilho recalcado de mágoas, memórias, raivas e razões: o pai de Alicita é um banana, a mulher é que manda nele, que espécie de pai deixa que lhe imponham as regras de estar ou não estar com a própria filha, se escolheu casar com ela que a aguente, mas não submeta a menina ao mando dela, ah, bastou tê-la visto numa ocasião e de relance para perceber que não era boa rês, vá-se lá perceber com que inteligência chegou a engenheira, tem mesmo arzinho de cábula ou graxista, isto não se faz a uma criança, ela que se vacine, que se mate, que vá pró diabo que a carregue, mas rejeitar a menina como se tivesse sarna? E o palerma ámen, ámen. Banana, palhaço, inútil, queira deus que dele não tenha Alice herdado muita coisa. Qualquer dia quem não a deixa mais ir sou eu e a justiça há de estar do meu lado.
Tudo isto lhe sai de uma assentada e em ninguém encontra resistência ou discordância. A avó, as velhas e mais quem ali passe, todos sabem que é perdido o tempo que se invista a apaziguar o coração ofendido de uma mãe, pois são dele todas as razões e mais algumas.
Por esta hora, o Marco do ginásio já desertou com o Notícias. Não tem musculatura para isto. A rapariga da papelaria é bonita, bem feita, engraçada, esperta, doce e generosa como poucas, mas tem humores que requerem entendimento, uma carga que dá muito trabalho e disposição para guerras que não são as dele.