23.3.20

Saio para levar jornais e revistas a quem só pode andar na rua pelos mínimos. A tarefa proporciona-me a felicidade de entrar papelaria adentro como a criança a quem dão duas moedas para uma mancheia de lambarices. Entrincheirada atrás do balcão, a rapariga recebe-me com uma alegria serena, invulgarmente dócil, como se o seu coração se tivesse expandido para lá do velho desgosto de amor. Enquanto me trata dos periódicos que listei, conta-me da luta que tem sido para manter a mãe em casa e resigná-la a uma injusta e desproporcionada condição de inválida. É verdade, a insurreição dos velhos anda agora nas bocas apartadas do mundo, enfim, há sempre alturas em que as lógicas se invertem, não sei se para efeitos de vingança, de empatia ou ambas. Todos os dias, é certinho, chega a casa e está a mãe na rua, à conversa com duas vizinhas, trocando novidades miúdas do quotidiano, como se a vida continuasse na ignorância de possibilidades como epidemias ou desastres económicos. A uma delas, veja se isto cabe na cabeça de alguém, ainda há duas semanas nem dirigia palavra, desentendidas que estavam por assuntos do condomínio mal explicados e pior resolvidos. Agora parece que a ideia do fim do mundo desfez certos equívocos e azedumes, embora tenha despertado outros. Juro-lhe: tenho de levantar a voz, mandá-la para dentro, obrigá-la a mudar de roupa e a lavar as mãos. Não sabe se chora ou ri ao lembrar quantas vezes a mãe fez igual com ela, numa ou noutra noite arrastando-a por uma orelha diante do pasmo dos amigos, vergonhas destas a gente não esquece mas era assim que se disciplinava a canalha, por cada desobediência, cada saída à revelia, cada minuto de atraso sobre a hora marcada, um dia inteiro de castigo sem televisão ou sem telefone. Nunca percebemos porque nos aprisionam aqueles que nos querem bem até ao dia em que vestimos o fato do carcereiro e os motivos que tanto repudiámos se tornam urgências ou bandeiras.
– E Alicita, como vai?
Diga-se o que se disser, é no coração das crianças que germina o dia de amanhã e eu preciso de ouvir falar de graça, luz, futuro. A rapariga da papelaria pousa o troco no balcão para evitar que eu lhe toque e, com um suspiro, faz notar a frágil condição do mundo e dos Homens.
– Já só espero que Deus lhe dê o privilégio de uma vida em liberdade.